PÁGINA PESSOAL DE PEDRO LARANJEIRA6 JUNHO 1974

UMA VIAGEM À ZÂMBIA

Estava-se em junho de 1974, em Portugal tinha acontecido o 25 de abril, os exilados tinham regressado ao país e eu tinha vindo para a Europa há dois anos e estava em Lisboa, depois de umas passagens mais ou menos prolongadas por Pretória, Paris, Londres e Porto.

Na altura, trabalhava como repórter "freelance" e fazia peças para o Rádio Clube Português (então "Emissora da Liberdade" - estava-se a pouco mais de um mês do 25 de abril) e para a Divisão do Disco Falado da Sassetti, editora discográfica que publicara entretanto uma montagem que eu tinha feito dos acontecimentos que levaram à deposição do regime de 40 anos e à chegada da democracia a Portugal.

Tinha ido dias antes para Moçambique, que eu conhecia bem, para averiguar como o 25 de abril estava a afectar a vida nas colónias.

Portanto, a 3 de junho estava em Lourenço Marques, onde a situação tinha uns comos e porquês que ainda não se percebia bem donde vinham e para onde iam, incluindo um carro armadilhado com uma granada, em bom estilo cinematográfico… que o dono percebeu a tempo… para além de outros frenesis com origens várias e objectivos por vezes muito obscuros.

Foram os únicos três dias da minha vida em que andei armado... pelo sim pelo não...

Eu trabalhava afanadamente e suava numa roda-viva de encontros, entrevistas e espreitadelas em tudo quanto era sítio, para aproveitar ao máximo a viagem que não poderia durar mais que umas duas ou três semanas… e não dormia há quatro dias, com a ajuda também de uns inevitáveis encontros com umas namoradas do antigamente, confesso...

Enfim, foi neste lindo estado que fiquei a saber, já a tarde chegava ao fim, que o Dr. Mário Soares, em Londres para conversações com o PAIGC, tinha anunciado que viria à Zâmbia daí a dois dias para se encontrar com Samora Machel.

Não queria perder a oportunidade, era uma reportagem que valia por todas as que fizera entretanto!

Mas não era coisa fácil, por várias razões, a principal das quais era a circunstância de a Zâmbia ser até então considerado um país "inimigo", com o qual não havia relações diplomáticas, só poder ser acedida de avião e ter um Aeroporto "Intercontinental", o que significava que qualquer voo, excepto uma aterragem de emergência, tinha que ser planeado e ter um pré-aviso (e correspondente autorização) de 72 horas… para além de que eu não tinha avião nenhum, o dinheiro não chegava para alugar um e a cidade mais perto, caso tudo o resto se resolvesse, era a Beira - e eu estava dois mil quilómetros mais a sul, na capital.

A juntar a tudo isso, não dormia há quatro dias, o que era, até então, o meu record de vida!

Portanto, "first things first", fui ao Hospital Miguel Bombarda, pedi para falar com o médico de serviço, identifiquei-me e expliquei-lhe o meu drama: tinha uma tarefa quase impossível, muito morosa e não achava que aguentasse… precisava de ajuda, qualquer coisa que me mantivesse acordado pelo menos mais outro dia...

O bom do doutor decidiu que eu merecia a "mãozinha" e deu-me dois comprimidos de "Metadrine", com a recomendação de tomar só um e o segundo apenas se fosse imprescindível.

Como nunca tomei drogas, nem sequer analgésicos, optei por jogar pelo seguro, cortei um ao meio e vai disto… bom, só adormeci trinta horas depois!

Logo a seguir, toco para o Aeroporto e apanho um voo da Deta para a Beira. Lá chegado, vou de imediato para a redacção do "Notícias da Beira" e lá consigo congeminar um plano para juntar mais cinco jornalistas e dividir o custo da viagem em Táxi Aéreo, o que já esticava as verbas disponíveis para dentro da razoabilidade.

Passo seguinte, tentar autorização para entrar na Zâmbia e arranjar o avião… pouca coisa, verdade?...

Levei a noite e o dia nisso: primeiro, achei que a melhor via para tentar contrabandear (legalmente, tinha que ser legalmente) seis jornalistas para um país inimigo era o governo de Sua Majestade a Rainha, que estava a intermediar as conversações entre o governo português e a guerrilha guineense; logo, podia fazer o mesmo em relação a Moçambique, pensei. Daí, sai telex para Londres, apelando ao governo britânico para que apresentasse a nossa causa a Lusaka, tanto mais que era um país da "Commonwealth", de excelentes relações com Downing Street.

Horas depois, recebo a resposta, muito simpática, cortez e prestável: sim senhor, com certeza, teremos o maior gosto, deve conseguir resolver-se sem dúvida em cerca de quarenta e oito horas...

...pois, mas o encontro era no dia seguinte, a pouco mais de doze horas (e um enorme fosso diplomático) de distância!

Portanto, inicio umas horas longas de diligências, que decerto aqueceram os telefones do "Notícias da Beira": decidi, pura e simplesmente, pedir a ajuda directa do governo da Zâmbia. Ligo para a Casa de Estado de Lusaka e tento chegar à fala com o Ministro de Negócios Estrangeiros - pareceu-me o mais apropriado.

Não estava, tinha ido visitar as minas de cobre em Kitwe…

Preso por um preso por mil, consciente de que me mandariam pentear macacos se pedisse para falar com o Presidente, tentei o segundo governante mais importante do regime: o Ministro do Interior.

Qual não é a minha surpresa quando consigo mesmo! É certo que tive que me identificar e explicar o meu drama a sete funcionários antes de chegar à fala com o senhor, mas de súbito lá estava ele, extrovertido e exultante, ao telefone, a fazer-se ouvir fora do auscultador pela sala toda, "Meu caro amigo, pois com certeza que pode vir e insistimos que venha e são todos bem-vindos, consideramos uma honra e um reforço a uma ocasião histórica - tudo isto numa voz tonitroante como se falasse ao povo todo sobre os destinos do país!

Só era preciso que voltasse a ligar daí a uma hora, com o nome completo dos jornalistas e do piloto, bem como o número de "brevet" e a matrícula do avião.

Com certeza, muito, muito obrigado, então até já… e lá vou eu para o outro caso bicudo, o avião!

Toda a gente conhecia o Guerra, da Beira, que tinha uma empresa de Táxis Aéreos, portanto, vá de telefonar ao senhor e negociar o voo.

Tá bem, tá, alugar um avião para seis pessoas sim senhor, claro! Assim que lhe disse qual era o destino desatou aos berros: "Você está maluco!? Zâmbia? Se lá entro nunca mais me deixam sair, eu tenho família, tenha juízo!" - e ponto final: não, definitivamente não!

Alguém lá no jornal me diz então que há um rapazinho novo na cidade, que tinha andado a pilotar uns táxis aéreos em Londres e depois tinha comprado um avião em segunda mão para se estabelecer na Beira… bom, vamos lá falar com ele (já tinha pouca esperança, verdade se diga)...

Mas não, ele nem pestanejou: ora bem, deve ser giro, vamos a isso!

Dezoito contos a dividir pelos seis, negócio fechado, uma hora depois estava ao telefone (foi o próprio Ministro que atendeu a chamada), passei as informações todas - "Podem levantar voo da Beira às seis da manhã, alguém estará no Aeroporto de Lusaka à vossa espera, para vos transportar até à Casa de Estado!"

Maravilha! Nessa noite dormi!

Não sei se a ideia influenciou outras iniciativas, mas o certo é que já eu estava nos braços de Morfeu (só mais tarde soube disto) houve contactos entre a Zâmbia e a Imprensa de Lourenço Marques, a quem foi oferecida a mesma oportunidade, e no dia seguinte lá estavam repórteres dos jornais e rádio da capital, também.

Mas para mim as peripécias ainda não tinham terminado.

Às seis da manhã, no Aeroporto, a primeira coisa que nos sucede, aos jornalistas e ao piloto… é sermos presos! "Então queriam ir para a Zâmbia, han?! - É preciso ter lata!"

O senhor que no-lo disse, disfarçado de qualquer coisa tipo Guarda-Fiscal, era o Agente da Pide/DGS que até então fizera serviço no Aeroporto e parecia ainda não ter pecebido o que se estava a passar à volta e no país.

Portanto, foi a primeira vez que tive que usar uma preciosidade que guardava religiosamente: uma credencial tipo "livre-trânsito" emitida pela própria Junta de Salvação Nacional que estava no poder em Lisboa e me identificava, autorizando a maior latitude de facilidades para a boa prossecução do meu trabalho.

Mandei acordar de imediato o homem que então mandava em Moçambique - não sei se chegaram a fazê-lo, mas meia hora depois já não estava preso e havia ordem para rodas no ar.

Aí, um momento folclórico: o piloto pergunta: algum de vocês sabe pilotar?

Era um Cessna bi-motor e eu tinha centenas de horas de voo em aparelhos iguais e também outros modelos da mesma marca, mono-motores, por todo Moçambique, em reportagens anos antes, com pilotos amigos que me ensinaram e me deram muita vez "o geitinho" de me deixar levar o avião, portanto, embora não encartado, disse: "eu sei, voar tudo bem, já aterrei, mas nunca levantei voo..."

"Ok - respondeu ele - então senta-te aqui ao meu lado, porque o piloto automático está avariado e assim posso preguiçar metade da viagem!"

Diz o meu colega Armindo, do Notícias da Beira: "Já não vou!" - mas estava a brincar, claro, foi mesmo, sentado atrás de mim e até o entrevistei antes fazer o gostinho ao dedo nos comandos do Cessna.

A coisa começou a ter piada quando sobrevoávamos a Rodésia e nos aproximamos da fronteira com a Zâmbia: a Torre de Lusaka mandou-nos baixar para 1200 pés, cruzamos a fronteira e… chega-me uma das experiência de vida que nunca esquecerei.

Repentinamente, à esquerda e à direita do nosso aviãozinho, chegam dois caças a jacto da Força Aérea Zambiana, fortes, potentes, a rugir por sobre o ruído dos nossos motores, a uns escassos vinte metros da nossa asa. À minha direita, perfeitamente visíveis, os canos das auto-metralhadoras, bombas sob as asas, tudinho como manda a tradição dos aviões de combate. O piloto, reconhecível a olho nu, sorri e acena com a mão… bom, ao menos isso… mas recordo que foi uma daquelas vezes em que me senti pequenino, pequenino...

Mas não havia qualquer problema: era a escolta até Lusaka e assim foi! Decerto não vieram para nos proteger, mas para nos vigiar, não fossemos nós ser "da reacção"... nunca se sabe...

À aproximação do Aeroporto, já com o nosso piloto de novo a garantir a segurança do voo e acabada a minha curtição de pilotar Cessna, escoltado por caças e jacto e tudo, eles abriram, um helicóptero daqueles grandalhões segui-nos por perto até à pista, mas logo depois lá estavam dois carros dos Ministério do Interior a honrar as promessas da véspera.

De notável, a paragem nos portões da Casa de Estado, onde tivemos que sair do carro que foi TODO vistoriado, motor, bagageira, escape, suspensão, bancos traseiros e dianteiros, "the works"... não brincam com a segurança!

Depois, os dois dias que o disco e a reportagem ilustram, com a única nota curiosa de cinco minutos de conversa a sós com Samora Machel que, percebendo que eu conhecia as zonas de guerra como quem lá andou a pé, que andei, me convidou para ir ter com ele a Dar-Es-Salaam e acompanhá-lo a uma ou duas visitas a bases da Frelimo em território de Moçambique… fiquei verde de raiva, eu que não tinha patrão que me pagasse esse tipo de despesas nem mais dinheiro para uma viagem à Tanzânia (ser freelance também tem desvantagens, pois!)… mas como teria gostado de poder aceitar esse convite!

Descobri entretanto que viviam cinquenta e duas famílias de portugueses em Lusaka e uma delas ofereceu-me uma casa para poupar o Hotel e um carro para me deslocar, o tempo que quisesse.

Aproveitei isso e fiquei uma semana depois de tudo terminado, para viajar e conhecer a cidade.

Colegas, talvez mal habituados com o que se passava no nosso próprio país e nas colónias, tinham-me dito para ter cuidado com os arredores, que podia ser perigoso: marginais, coisas dessas…

Pois andei mesmo pelos arredores, bares com música, copos e confusão até altas horas, não evitei sítio nenhum e em muitos meteram conversa comigo e invariavelmente "fizeram-me uma festa" quando disse que vinha de Portugal e de Moçambique.

No geral, trouxe da Zâmbia uma lição: foi o sítio do mundo, e conheço muitos, em que menos me recordei que existe racismo, seja de que espécie for: na Zâmbia não existe!

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© PEDRO LARANJEIRA

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