PÁGINA PESSOAL DE PEDRO LARANJEIRA 25 ABRIL 2004

O motorista da Junta

Em 25 de abril de 2004, precisamente trinta anos depois do dia em que viajei Lisboa adentro com a coluna militar do capitão de abril que abriu as portas que Ary cantou, levei a minha saudosa mãe velhinha a uma viagem a Fátima, que desejou anos antes de eu lha ter dado.

Foi outro dia inesquecíval, a três décadas de distância. Nesse, não fui jornalista, não estive debaixo de fogo, não vi sangue na roupa de ninguém... fui apenas um filho que não acredita em Fátima a dar a quem me ofereceu a vida algo em que ela acreditava.

Morreu pouco depois, mas a felicidade com que as fotos ma recordam nesse dia, ninguém lha teria podido roubar!

Comigo ficou a memória do seu sorriso, do encanto que lhe encheu as horas, mas também outra, para o pergaminho das páginas que nos fazem a vida, porque nesse dia aconteceu uma coisa extraordinária.

A viagem à cova dos pastorinhos foi uma excursão organizada em S. João da Madeira, um autocarro povoado de cabelos brancos.

Brincámos, trocámos histórias... e a Zaida, vaidosa por não saber que o filho canta desafinado, instou-me para "animar a festa", como é próprio numa excursão de um povo que já pouco bebe da vida...

Lá lhe fiz a vontade; estávamos no norte, nenhum alentejano se ofenderia por me ouvir a estragar-lhe o "Rama ó que linda Rama" e bóra lá, cantámos todos, os versos da tradição e aqueles que fui inventando, ajudado pelo motorista do autocarro.

Como ele não desafinava, consegui convencê-lo a cantar-nos, também, uma coisinha sua...

Ele disse que sim... e eu tive um dos maiores choques que jamais me arrepiou a sensibilidade...

Voz de tenor, firme e sonoro... poderoso!

O nosso silêncio a beber-lhe a música parecia emudecer os camiões da outra faixa da auto-estrada, lá fora, como se estivéssemos num palco de Viena, nós quarenta a ouvir pelos ouvidos de dois mil amantes da bela arte. A sua música não dependia da cultura de ninguém. Da velhinha analfabeta lá ao fundo, ao psicólogo do grupo, mesmo atrás do banco do condutor, pairávamos num vórtice de sons, de um encanto que nos transportava ao beber de cada segundo, como se a musicalidade se prolongasse para além do tempo que o som vibrava... Nunca a música me atingiu tão profundamente, me possuiu tão completamente!

Ali, num autocarro de uma excursão para a terceira idade.

Ali, da voz aldeã do motorista de uma junta de frequesia dos arredores.

Cantou, voltou a cantar, cantou de novo... à ida e à volta. Não nos conseguiu mais convencer a perdoar-lhe o silêncio.

Então lembrei-me e pedi-lhe que nos deixasse ouvi-lo num dos mais emblemáticos sons da música que toda a gente conhece: "Ouça, amigo, não sai desta sem nos cantar o "O Sole Mio"... nem pense!"

Ele sorriu e fez o inesperado: explicou que "essa" era uma ária que não podia ser cantada ao volante de um autocarro... "mas sim, tenho todo o gosto!"

Entrou numa área de serviço, estacionou entre as árvores, pôs-se de pé, virou-se para nós... e cantou "O Sole Mio".

Muitos quilómetros de vida ensinaram-me a disfarçar... e ninguém percebeu as lágrimas que consegui esconder... mas só eu sei o turbilhão que se apoderou de mim!

As coisas que a vida nos dá!

Um homem que não está gravado, que não tem CDs... que ninguém conhece!

Chama-se José Luis Oliveira, é conhecido por Luis Paranhos.

O motorista da junta de freguesia de uma aldeia do interior!...

Foi um dia eterno... uma tarde de encanto!


© PEDRO LARANJEIRA

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