PÁGINA DE IMPRENSA DE PEDRO LARANJEIRA4 janeiro 2014

Olhar o Novo Mundo

... uma lenda urbana que já deu várias voltas ao mundo
   Aqui estou eu, descendente dos que povoaram a América há 40 mil anos,
        para encontrar os que a "descobriram" há 500" 
Guaicaípuro Cuatemoc, índio americano   

(leia no final, por favor, o resultado da minha investigação sobre este assunto, para esclarecimento da verdade)

Há décadas que circula na Internet "Um discurso feito pelo embaixador Guaicaípuro Cuatemoc, de ascendência indígena, sobre o pagamento da dívida externa do seu país, o México, que embasbacou os principais chefes de Estado da Comunidade Europeia. A Conferência dos Chefes de Estado da União Europeia, Mercosul e Caribe, em Madrid, viveu um momento revelador e surpreendente: os Chefes de Estado europeus ouviram perplexos e calados um discurso irónico, cáustico e historicamente exacto." - este, ou outro parecido, é o texto que normalmente apresenta o que se segue:

DISCURSO

"Aqui estou eu, descendente dos que povoaram a América há 40 mil anos, para encontrar os que a "descobriram" há 500... O irmão europeu da alfândega pediu-me um papel escrito, um visto, para poder descobrir os que me descobriram. O irmão financeiro europeu pede ao meu país o pagamento, com juros, de uma dívida contraída por Judas, a quem nunca autorizei que me vendesse. Outro irmão europeu explica-me que toda a dívida se paga com juros, mesmo que para isso sejam vendidos seres humanos e países inteiros, sem lhes pedir consentimento. Eu também posso reclamar pagamento e juros.
 
Consta no "Arquivo da Companhia das Índias Ocidentais" que, somente entre os anos de 1503 a 1660, chegaram a São Lucas de Barrameda 185 mil quilos de
ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América.

Teria aquilo sido um saque? Não acredito, porque seria pensar que os irmãos cristãos faltaram ao sétimo mandamento! 

Teria sido espoliação? Impede-me Tanatzin de me convencer que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue do irmão.

Teria sido genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, Bartolomeu de Las Casas ou Arturo Uslar Pietri, que afirmam que a arrancada do capitalismo e a actual civilização europeia se devem à inundação dos metais preciosos tirados das Américas.

Não, esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata foram o primeiro de tantos empréstimos amigáveis da América destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário disso seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito a exigir não apenas a devolução, mas
uma indemnização por perdas e danos.

Prefiro pensar na hipótese menos ofensiva

Tão fabulosa exportação de capitais não foi mais do que o início de um plano "MARSHALL MONTEZUMA", para garantir a reconstrução da Europa arruinada por suas deploráveis guerras, do tal de Hitler, Cristãos contra Cristãos e contra os Muçulmanos (criadores da álgebra) e de outras conquistas da civilização.

Para celebrar o quinto centenário desse empréstimo, podemos perguntar: Os irmãos europeus fizeram uso racional responsável ou pelo menos produtivo desses fundos?

Não. No aspecto estratégico, delapidaram-nos nas batalhas de Lepanto, em navios invencíveis, em terceiros reichs e várias outras formas de extermínio mútuo.

No aspecto financeiro, foram incapazes - depois de uma moratória de 500 anos - tanto de amortizar capital e juros, como de se tornarem independentes das rendas líquidas, das matérias-primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo. 

Este quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman, segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar, o que nos obriga a reclamar-lhes, para seu próprio bem, o pagamento do capital e dos juros que, tão generosamente, temos demorado todos estes séculos para cobrar. Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus, as mesmas vis e sanguinárias taxas de 20% e até 30% de juros ao ano que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo.

Limitar-nos-emos a exigir a devolução dos metais preciosos, acrescida de um módico juro de 10%, acumulado apenas durante os últimos 300 anos, concedendo-lhes 200 anos de bónus. Feitas as contas a partir desta base e aplicando a fórmula europeia de juros compostos, concluimos, e disso informamos os nossos descobridores, que nos devem não os 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, mas aqueles valores elevados à potência de 300, número para cuja expressão total será necessário expandir o planeta Terra.

Muito peso em ouro e prata... quanto pesariam se calculados em sangue?

Admitir que a Europa, em meio milénio, não conseguiu gerar riquezas suficientes para estes módicos juros, seria admitir o seu absoluto fracasso financeiro e a demência e irracionalidade dos conceitos pressupostos e convencidos de capitalistas. 

Tais questões metafísicas, desde já, não nos inquietam a nós, índios da América. Porém, exigimos a assinatura de uma carta de intenções que enquadre os povos devedores do Velho Continente na obrigação do pagamento da dívida, sob pena de privatização ou conversão da Europa, de forma tal, que seja possível um processo de entrega de terras, como primeira prestação de dívida histórica..." 

(fim de discurso)

Esclarecimento

Este discurso circula na internet há décadas. É um dos melhores exemplos de que a internet é uma plataforma onde tudo pode ser dado à luz sem a responsabilidade inerente a quem publica de que tenha o rigor e a verdade de ter de facto acontecido.

Não se consegue apurar quem de facto é este "Cacique Indígena", se existe, que país ou povo representa... o seu "nome" é amiúde confundido com o de líderes indígenas americanos desparecidos, entre os quais o "Cacique Guatimozin" (que morreu em 1525) reproduzido numa pintura de Leandro Izaguirre que o mostra a ser torturado por Cortez.

Para uns é mexicano, para outros venezuelano.

O testemunho mais antigo que encontrei de conhecimento deste texto data de 1984.

No entanto é frequentemente referido como tendo acontecido em 1992, nas comemorações dos 500 anos de descoberta da América, outras vezes em 2002, tanto em Valência como Barcelona ou Madrid, perante líderes europeus que não se sabe quem são numa Conferência que não se sabe qual foi.

Não existe uma única gravação audio ou vídeo da ocorrência.

Traduzido num incontável número de idiomas, o texto deu a volta ao mundo e chegou a minha vez de me debruçar sobre o assunto, daí a investigação que fiz sobre a acuidade dos dados que se lhe referem.

É muitas vezes impossível apurar com precisão onde começou uma lenda, um mito urbano ou uma teoria da conspiração... ainda assim, apurei dois factos, a saber:

1. Se tivesse acontecido, principalmente com a referência cronológica a 2002, em plena era da Sociedade de Informação e da comunicação global, haveria com certeza dados precisos do acontecimento - não há.

2. A hipótese que encontrámos com maior probabilidade de ser verdadeira é a de que se trate de um texto original do escritor venezuelano o Luis Britto Garcia...

(alegadamente, o texto terá sido publicado no jornal "El Nacional" de 12 de Outubro de 1990, facto que não conseguo confirmar fora de Caracas, dado que o sítio oficial do periódico não disponibiliza conteúdos anteriores a 2012 - mas na internet foi-o, milhares de vezes, numa multiplicidade de línguas e idiomas)

Apesar de tudo, como literatura de ponderação histórica, o texto afigura-se-me uma saudável reflexão sobre os últimos 500 anos das atividades europeias no mundo, pelo que aqui o reproduzo, com a minha vénia a Luis Britto Garcia...

Pedro Laranjeira


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