O Sonho cor-de-verde da Rita
Tudo começou com um parto complicado aos oito meses de gestação. Primeiro, problemas de transporte para o Hospital, depois, quatro horas de espera com uma hemorragia interna, num quadro de hematoma hepático, ecografia a mostrar um bebé de 34 semanas quase morto, decisão de cesariana e, logo, adiamento por falta de incubadoras no estabelecimento hospitalar. Portanto, transferência ainda para outro Hospital, onde a Rita foi retirada sem vida e reanimada. Cuidados intensivos, prognóstico reservado, possibilidade de colapso fatal nas 24 horas seguintes, tanto para a mãe como para a filha.
Ambas sobreviveram, no entanto. A mãe com sequelas graves que se prolongaram por 2 meses, durante os quais não conheceu a filha. A Rita com uma maciça destruição de células já à nascença, um mês de incubadora e paralisia cerebral para o resto da vida.
DANOS IRREVERSÍVEIS
Maria Santos ainda hoje recorda o momento fatídico e a frase com que uma médica lhe traçou o que seria o seu destino: "Então a senhora não sabe o que tem a sua filha? Toda a gente já sabe que a sua filha tem danos irreversíveis!" - "Assim, nua e crua!"
Doente, sozinha, com uma filha deficiente de um quilo e oitocentos aos dois meses e um filho de pouco mais de dois anos, Maria Santos fez-se à vida numa sociedade onde não encontrou, então, o auxílio de que tão desesperadamente precisava.
O último reembolso de IRS chegou para pagar dois meses de assistência domiciliária, depois disso mãe e filhos ficaram por sua conta. Até o apoio de um psicólogo ao irmão da Rita, foi suportado pela mãe, para sessões de ludoterapia meio ano depois - "Desde que a minha filha nasceu, desde que a tragédia me bateu à porta, sou eu que ando a apalpar terreno e a procurar aqui e ali… se estiver à espera de um organismo do estado, estou muito mal!"
PL - Há alguma esperança de recuperação para a Rita?...
MS - Há. A minha filha, infelizmente, nunca vai ver, mas a nível motor poderá evoluir. O problema é que estas crianças pouco se movimentam e, como qualquer pessoa que esteja acamada, quem não se movimentar cria deformações ósseas. Isso é particularmente grave numa criança em crescimento.
DIVIDEM O MAL PELAS ALDEIAS...
PL - Não há respostas para essa situação?...
MS - O estado tem um serviço de atendimento precoce, com psicólogos, assistentes sociais e fisioterapeutas, mas há uma multidão de crianças carenciadas e então dividem o mal pelas aldeias. Fui lá duas vezes por semana, meia hora de cada vez… isso é uma gota de água o oceano! Se a criança não for estimulada com fisioterapia intensiva durante o crescimento, nenhum santo lhe valerá na adolescência!
PL - Não há capacidade para atender toda a gente?...
MS - Acho que há falta de motivação por parte de alguns profissionais.
"NASCEU DEFICIENTE, COITADINHO..."
Ainda que eles não o digam, a imagem com que eu fiquei foi que se pensa "Olha, nasceu deficiente, coitadinho, está condenado. Vamos fazendo uns tratamentos e pronto!" - eu não posso pactuar com uma situação dessas!
PL - Quais são, então, as hipóteses da Rita?...
MS - A minha filha ainda não desenvolveu deformações ósseas, porque eu faço fisioterapia à minha conta e com a ajuda pontual de pessoas boas que aparecem de vez em quando. O grande problema é a falta de aparelhos, como cadeiras de rodas ou planos inclinados, que é um instrumento que as crianças usam para ganhar força nas pernas. É lamentável que o estado não tenha aparelhos, mesmo velhos, para emprestar...
É TUDO UMA TRETA!
PL - Mas há aparelhos novos para venda?...
MS - Há, mas não são comparticipados… Há situações como a de o Centro de Paralisia Cerebral requisitar uma cadeira para uma escola, e a cadeira chegar dois ou três anos depois. Quando chega, já não serve… Há escolas que nem sequer têm rampas e na maior parte não há condições, é tudo uma treta! As infra-estruturas não estão no terreno.
CUBA, UM PASSO EM FRENTE
PL - Entretanto, sei que esteve em Cuba...
MS - Estive lá seis meses, por solidariedade das pessoas. Foi há três anos. A minha filha não comia, agora já come. Se não tivesse ido a Cuba, a Rita alimentava-se agora por um tubo.
PL - Pensa voltar?
MS - Não, a minha vida familiar não o permite, por causa da escola do meu filho, e por falta de meios, Cuba é muito caro. Mas em Portugal podia fazer-se o mesmo que em Cuba, se o estado o quisesse!
UM SONHO COR DE VERDE
PL - E o livro? Conte-me lá essa história ...
MS - Quando vim de Cuba, vim a pensar no livro. A ideia partiu disto: eu recuso-me a aceitar que a Rita, e outras como ela, sejam retratadas como "aquela coitadinha, deficiente"…, penso que ninguém ainda se lembrou de fazer um conto infantil em que a personagem seja uma menina "diferente".Não quis fazer uma biografia, porque essa é um drama e os portugueses já têm dramas a mais. Eu quis fazer um livro que transmitisse positivismo.
FADAS REAIS PARA
CRIANÇAS DIFERENTES
No livro, a minha filha vai ter um sonho com fadas. E porquê fadas? Porque eu entendo que na sociedade qualquer pessoa pode ser uma fada para uma criança diferente.
A história foi escrita por mim e pela Ana Almeida, uma amiga minha. Tentámos personalizar as fadas em figuras reais, precisamente para dar a ideia de que as fadas existem, na realidade! No livro, todas têm o seu nome real.
Outro sonho que eu tinha era o de ter uma canção dedicada à minha filha. Como ela ouve, quis que pudesse perceber através de uma canção o amor que lhe dedico e a esperança que tenho por ela.
PL - Trata-se de um livro inclusivo, um áudio-livro…
MS - Claro, eu achei que tinha que dar o exemplo e portanto o livro é acompanhado por um CD, com a história contada verbalmente pelas personagens e com língua gestual para que os surdos possam ter acesso à história. A canção, cuja letra aparece no livro, é um tema inédito.
AS FIGURAS PÚBLICAS
DA MAFALDINHA A CAVACO SILVA
O Presidente Cavaco Silva ofereceu-me uma mensagem que vem publicada na contra-capa do livro e a Secretária de Estado da Reabilitação Social, Dra. Idália Moniz, escreveu o prefácio.
Quero também que essa casa seja uma referência para outras famílias que se revejam neste projecto.
PL - Que apoios conseguiu já?
MS - Vários: a Liberty Seguros comprou um lote de livros que distribuiu pelo colaboradores, a Mandala gravou o CD, a Lupi ofereceu as fotografias, tenho tido o apoio do Montepio, a Robialac ofereceu-se para pintar a casa e tenho já também o arquitecto, mas falta-me ainda muito.
PL - ...o quê?
MS - Materiais de construção, por exemplo. Essencialmente, quero que a casa responda às necessidades da minha filha, que tenha rampas, que ela possa andar na casa toda e que tenha um pequeno jardim para poder apanhar ar, que é uma coisa que agora não tem, porque no nosso apartamento não há varanda.
Não quero um palácio, quero apenas uma casa com acessibilidades onde possa tomar conta da minha filha, porque não vou nunca abrir mão dela. Enquanto for viva quero ser eu a cuidar dela, como tenho feito até hoje, com muito amor, e garantir que quando eu estiver "do outro lado" e já não puder tomar conta dela, alguém tenha condições para o fazer.
Quando a minha filha deixar de estar neste mundo, quero que a casa seja transformada numa instituição de solidariedade social, ao serviço da comunidade.
AS MENINAS NORMAIS
SONHAM COR DE ROSA
PL - Porquê o sonho em "cor de verde"?
MS - Cor de verde é a cor da esperança. As meninas normais sonham cor de rosa, a ela a vida não lhe deu esse direito, portanto tem que sonhar verde, como eu sonho com ela e para ela, enquanto for viva!
A minha filha não é um fardo, é um ser humano que eu amo muito!
As fadas: Susana Félix, Tânia Ribas Oliveira, Beatriz Bastos, Fernanda Freitas, Paula Teixeira, Rita, Mila Belo, Marta Leite Castro e Margarida Pinto Correia
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