PÁGINA DE IMPRENSA DE PEDRO LARANJEIRA 2 agosto 2008

MAIS DE 500 ANOS DEPOIS
O  SANTA  MARIA  NAVEGA

A nau em que Cristóvão Colombo descobriu o Novo Mundo está viva e navega em pleno Século XXI.

Depois de três horas a bordo, entre marujos medievais, aves exóticas, baús e cordame, apetrechos náuticos e recordações antigas, ganha-se um respeito novo por esse feito grandioso que foram os Descobrimentos.

Ilha da Madeira, varanda de um quarto sobre o mar, águas transparentes e um azul profundo onde o céu e o oceano discutem a derradeira beleza de um paraíso em que vivemos mas tanto nos escapa.

A tarde vai a meio, o calor abraça de conforto morno um prazer descoberto de estar vivo e deixar o olhar perder-se no mesmo horizonte que fascinou os nossos antepassados ao ponto de os lançar na primeira grande aventura da humanidade.

...e de repente... o inesperado!

Pestaneja-se duas vezes, foca-se e desfoca-se o olhar… e confirma-se a surpresa do que a vista afirma: ali mesmo em frente, a cruzar as águas calmas da pérola do atlântico, vai o Santa Maria, a nau quinhentista que Cristóvão Colombo comandou à frente do Niña e do Pinta quando, em 1492 descobriu o Novo Mundo!

Nunca mais falo do Entroncamento. Fenómeno, sim, é a Madeira, toda ela! Depois de nos invadir os sentidos com a beleza gritante de um paraíso onde se fala português, só faltava mesmo ligar cinco séculos de tradições inegavelmente lusitanas, e fazer renascer a nau do Almirante na terra descoberta pelo seu avô.

Terá sido por João Gonçalves Zarco ali ter aportado em 1419, pai que era de Isabel mãe de Colombo, segundo indiciam as mais recentes descobertas, que Cristóvão foi viver para o Arquipélago, na Ilha de Porto Santo, onde está preservada a casa que habitou com a esposa, Filipa Moniz de Perestrelo, filha do Capitão Donatário da Ilha.

Mas o Santa Maria, esse ficou-se pelo Novo Mundo, nunca regressou. O navegador voltou com o Niña e o Pinta, curiosamente rumo a Portugal, onde passou uma semana entre Açores, Lisboa e Faro, antes de aportar a Castela com a boa nova da descoberta.

E agora, como que por magia, o navio que comandou a frota da grande aventura está nas águas da Madeira.

Trata-se de uma réplica exacta até ao mais ínfimo pormenor, construída com base em todos os testemunhos e documentos que o descrevem e concretizou o sonho de um holandês também apaixonado pela Ilha.

Rob Wijntje juntou-se a oito madeirenses em Câmara de Lobos e começou a construir, em julho de 1997, a nau com que Cristóvão Colombo se tinha feito ao mar 505 anos antes.

Doze meses depois a tarefa estava concluída e tinha renascido o Santa Maria, 200 toneladas de madeira maciça, 22 metros e três mastros, o mais alto com 16 metros.

Logo nesse ano, encontrou destino e rumou a Lisboa: esteve na Expo 98.

Ali ancorou durante 25 dias e recebeu a bordo, nesse período, 97.016 visitantes - quase quatro mil pessoas por dia.

De regresso à Madeira, navega 51 das 52 semanas do ano.

Pára apenas sete dias para manutenção e reparos e só não levanta amarras se estiver mau tempo, o que, numa Ilha em que é Verão o ano todo, dispensa comentários.

Ocasionalmente, é requisitada por empresas cinematográficas para filmagens históricas, como foi já o caso do Canal Discovery, ou para visitas escolares e iniciativas culturais. Por norma, organiza duas excursões diárias de três horas ao longo da costa sul da ilha, que proporcionam um ângulo abrangente das belezas da Madeira e muitas vezes a partilha das águas calmas com famílias de golfinhos amigáveis e até mesmo um cachalote ocasional.

Mas voltando à varanda do meu quarto… após o choque inicial da surpresa, saí para as mil e uma perguntas que me fervilhavam a curiosidade e foi assim que aprendi tudo isto.

Mas faltava o melhor! Oh sim, claro!

No dia seguinte fui ao porto do Funchal e lá estava ela, imponente, autêntica, a caravela do Almirante, a réplica renascida do Santa Maria de Colombo.

Fui a bordo.

A nau preparava-se para partir com meia centena de passageiros de uma miríade de nacionalidades.

O Capitão recebeu-me com grande entusiasmo e mimou-me com histórias infindáveis de aventuras e recordações.

516 anos depois de Cristóvão Colombo, é agora o Comandante Miguel Gomes o capitão da nau.

Quatro marujos, trajados como os mareantes do século XV, completam a tripulação.

Levantaram-se amarras e fizemo-nos ao mar.

Pouco se percebiam os acrescentos modernos de pilotagem.

Construído tão fielmente quanto possível para imitar a nau perdida, só o colorido das roupas dos passageiros nos fazia perceber que não estávamos na Idade Média.

Para além de três pequenos instrumentos bem disfarçados junto à roda do leme, apenas uma diferença separava as duas realidades a cinco séculos de distância: o antigo porão de mantimentos, onde agora, completamente escondido do olhar, ronronava um motor diesel.

Mas as velas lá estavam, enroladas neste passeio, mas outras vezes desfraldadas a exibir as cruzes de Colombo, com extremidades em ângulos de 45 graus, como a História obriga a recordar.

Mostraram-me o barco todo, do convés à proa, das arrecadações ao porão, do cesto da gávea à cabine do almirante, onde fui convidado a deixar uma memória no livro de bordo, escrita com uma

pena de arara. E elas lá estavam também, dois passarões de cores feéricas com uma permanente disponibilidade para se deixarem fotografar sobre o ombro dos passageiros e para dizer "olá" em várias línguas.

A completar os habitantes permanentes da nau, um cachorro que detesta máquinas fotográficas e a quem todos chamam, muito apropriadamente... Colombo.

Depois de mais de uma hora de viagem ao largo da costa, o Comandante Miguel Gomes ancorou numa baía de águas transparentes, frente a Câmara de Lobos, um recanto de paraíso arrancado à doçura dos trópicos.

Informou toda a gente que ficaríamos 20 ou 30 minutos por ali e quem quisesse podia mergulhar e ir nadar um pouco.

A minha frustração por não ter fato de banho tornou-se tão visível que o marujo Camacho (já nos conhecíamos todos) veio ter comigo e disse "Não seja por isso, tome lá as minhas calças!" - e ofereceu-me os calções de tripulante-Colombo, uma peça medieval tipo balão em pano de pinho grosso, amarrada à cinta com uma fita e aos joelhos com um cordão.

Não foi tarde nem foi cedo: subi à amurada do convés (não sem antes o Comandante me ter tirado uma fotografia naqueles preparos) e mergulhei numa água com reflexos de Índico.

Quase perdi os calções, mas não notei diferença nenhuma de temperatura.

O mar estava a 20 graus, parecia um banho de imersão lá em casa!

Assim ficamos durante um bom bocado e, de volta à nau, não me deixaram vestir, disseram que tinha de beber na pele toda a doçura do clima da Madeira.

Bom conselho, foi uma viagem inesquecível.

Dela, guardo uma recordação forte, superior a todas as demais e que só ali se percebe: a dado momento, subi ao castelo da popa, o piso mais alto da parte de trás e fiquei a olhar para a nau

que então se me desenhou como a "casca-de-noz" que de facto é nos seus curtos 22 metros, ali a navegar num mar parado de águas tranquilas, enquanto me apercebia da imensa coragem que foi necessária aos homens que num barco igual se fizeram ao Atlântico há quinhentos anos, arrostando com ondas de 12 e 15 metros, rumo ao desconhecido, numa época em que a marinhagem era inculta e se acreditava que no mar havia monstros!...

Que grande feito foram os Descobrimentos!


© PEDRO LARANJEIRA
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