PÁGINA DE IMPRENSA DE PEDRO LARANJEIRA 5 julho 2008

ANGELINA,
DIDIER LOCKWOOD,
PHIL WOODS,
JEAN-JACQUES MILTEAU,
ROSA PASSOS,
CHUCHO VALDÉS,
o "ensemble-revelação"
New Generation,
vozes como Michael Robinson, Ron Smith, Mayra Caridad Valdés, empurrados para além dos seus próprios planos por um público avidamente participante, encheram o verão eterno das noites madeirenses com o encanto de momentos inesquecíveis.

TRÊS DIAS

DO MELHOR JAZZ

QUE HÁ NO MUNDO

nas comemorações dos 500 anos do Funchal

O FESTIVAL MÁGICO

Foi desde o primeiro minuto, lançada ao cair da noite pelo encanto de Angelina, que começou a desenhar-se a sensação de que estava a acontecer algo que a definição de "concerto" não chegava para definir.

A meio da segunda noite era já tema corrente de conversa que se devia mudar o nome do Festival... não devia continuar a ser conhecido como "Funchal Jazz Festival" mas sim, indiscutivelmente, como "Funchal Jazz Magic", porque estavam a viver-se momentos de pura magia, inesperados, absorventes, apaixonantes!

O próprio Presidente da Câmara do Funchal, numa entrevista que me deu quando terminou o evento, concordou que este tipo de reacção fazia todo o sentido - e Miguel Albuquerque sabia bem do que falava, porque esteve ao longo dos três dias sempre sentado na primeira fila, com uma expressão que não deixava dúvidas quanto ao prazer que tudo aquilo lhe ia proporcionando.

ANGELINA

Filha da terra, madeirense nascida entre músicos, Angelina Vieira dos Santos rumou ao Porto onde se fez médica, especializou-se em neuro-radiologia em Almada, frequentou a Escola de Jazz do Barreiro e editou "Jazz Feelings" em disco, faz três anos.

É uma voz doce, que envolve, acaricia e entrega ao ritmo, talvez o melhor que se possa aconselhar a quem nunca se interessou particularmente por esta expressão do folclore humano, para um primeiro olhar revelador. É um passaporte, a ponte entre gostar-se de música e entender-se o que o mundo chama "jazz".

Foi como que a timoneira a conduzir o barco porto afora e a enquadrar-nos suavemente no mar de encanto que faria os próximos dias.

Com ela se esvaiu a luz do entardecer e chegou a noite na abertura do festival onde começavam a nascer magias, sem que ninguém desse pelo lento escurecer, presos ao palco e à voz, aos improvisos de João Maurílio e Artur Freitas, aquele um pianista cúmplice já de muitas musicalidades, este um virtuoso de sons que transcendem culturas e dão um toque de intemporalidade ao momento.

Pedro Pinto pontuou o suporte baixo do percurso e Jorge Moniz ritmou os caminhos e as nuances. Muito bonito.

Como ouvi alguém dizer lá para o fundo do recinto, "para uma médica do Porto, esta madeirense tem alma!"

DIDIER LOCKWOOD

Quem não se tenha passeado ainda com profundidade pelos sons do jazz, associa o género a saxofones e trompetes, baixos, pianos e tipos vários de baterias, vozes com ou sem palavras, umas cristalinas outras roucas… mas fica-se por aí.

Surge-lhe então, com mal disfarçada surpresa, uma pergunta ingénua: violino, harmónica?...

... isso é normal no Jazz?...

Pois é! A verdade é que tudo cabe no Jazz. Tudo!

O Jazz é uma forma de comunicação que transmite "feelings" (como o disco de Angelina) da alma de quem cria para os sentidos de quem assiste. Ligação directa.

O violino de Didier Lockwood ensinou os segredos dessa lição desde as primeiras notas. Lição que aprendeu ao longo de três décadas, mais de 3.000 concertos, trinta e tal álbuns e as emoções de culturas do mundo inteiro transmutadas para as sonoridades que oferece.

Imaginem um violino a explodir num mundo em que as regras da física não têm linhas rectas mas tudo se desenha em curvas, de tal modo que a explosão como que nos "implode" já bem dentro dos sentidos e nos faz esquecer que estamos a respirar, nos absorve, nos possui e nos levita sem peso numa entrega que se mistura ao fluxo que a música cria.

Duas mil pessoas estavam assim, naqueles jardins da Quinta Magnólia, e ainda era só o primeiro dia.

Lockwood levou com ele um grupo extraordinário de jovens a que chamou "New Generation", que me fizeram lembrar as teorias de consciência colectiva das sociedades mais avançadas de insectos… perdoem a comparação, mas foi o que pensei, perante aquele entrosar instantâneo, perfeito, com que todos tocavam como se houvesse apenas um instrumento.

Era Thomas Encho, ao piano e também no violino, outro Encho no trompete, este David, Zacharie Abraham no contrabaixo e Nicolas Charlier em bateria: não consegui encontrar solução de continuidade, os sons eram diferentes, mas nasciam juntos e pareciam sair de um super-jazzofone que não foi inventado mas ali me ofereceu um dos melhores momentos musicais da minha vida.

PHIL WOODS

Não admira que um músico com quatro Grammies e companheiros como Quincy Jones e Benny Goodman tenha granjeado aos 50 anos de carreira a aura de um dos melhores saxofonistas de todos os tempos.

O que admira, isso sim, é que mesmo quem já o ouviu e lhe conhece a música consiga ainda encontrar-lhe algo de novo, tudo de novo, mais titilante que a recordação.

Abriu a segunda noite na Magnólia, rodeado pelos amigos que o têm acompanhado em experiências de re-descoberta, sempre inspiradas no evoluir dos momentos com que se entrecruzam. Jesse Davies contrapôs com saxofone alto, Ben Aronov esteve ao piano e Jesper Lundgaard no baixo.

Os sons passearam-se de instrumento a instrumento, desafiados por uns, motivados por outros, ligados pelo sax de Philip, em solos e improvisos que recomeçavam apoteoses quando se pensavam que iam concluir, desdobrando a música em momentos a fluir como cascata sem fim.

Um dos grandes acontecimentos da noite foi um solo electrizante de Douglas Sides na bateria, que levantou os espectadores, deslumbrados.

Parecia impossível, depois da magia nascida na véspera, que algo pudesse ainda superar a emoção do que tinha já acontecido, e a verdade é que… superava e não superava! É impossível achar-se que um momento é melhor que outro, porque são todos tão completos e cheios em si próprios, que acaba por se perceber que não podem comparar-se. São grandes, são supremos… mas, acima de tudo, são diferentes!

JEAN-JACQUES MILTEAU

Foi neste clima que chegou mais uma surpresa: um contador de histórias francês, homem de sete ofícios, que tem carregado pelo mundo a bagagem mais leve que o jazz conhece: uma harmónica.

Com ela corporizou sons que encontramos em Aznavour ou Yves Montand, coloriu auroras no Círculo Polar Ártico e nos lagos da Suíça, partilhou o berço multi-cultural de todas as raízes cubanas, com ela tornou-se louvado por aqueles a quem corre música nas veias.

Cidadão polivalente de um mundo de contrastes, Milteau tem feito de tudo, de publicidade a trabalho humanitário.

Nos jardins da pérola do atlântico, insinuou-se tranquilamente nos sentidos despertos de mais de duas mil pessoas e transportou-as a voos de que não quiseram acordar, mesmo depois de terminada a actuação e toda a gente ter saído do palco.

Ao fim de pouco mais de um minuto, chegou claramente aos bastidões do sexteto a posição de uma audiência que entretanto não perdera um espectador sequer...

... e Jean-Jacques Milteau teve que se fazer ao palco de novo, sentar Eric Lafont na bateria e desafiar Giles Michel e Manu Galvin a voltar a passear as mãos pelos braços do baixo e da viola, enquanto dois extraordinários

vocalistas regressavam para envolver o público na actuação, agora mais ainda do que o tinham feito antes.

A comunicabilidade de Michael Robinson e Ron Smith é algo de invulgar em palco.

São virtuosos na voz, mas parecem ter dotes telepáticos no modo como enquadram a assistência no que se vive no palco. Fizeram do grande recinto da Magnólia um espaço global participado por todos. Foi um momento transcendente!

O extenso pontilhado de cadeiras brancas que enchiam o recinto, por meia dúzia das quais passeara o corpo na véspera, não tinham hoje um espaço vago, estavam todas vestidas de amantes de música, numa ocasião em que já não restavam dúvidas que fazia todo o sentido mudar o nome do Festival, porque não se estava a assistir a um concerto, estavam a viver-se momentos de pura magia!

ROSA PASSOS

O terceiro dia trouxe a nossa língua de volta ao centro das coisas. Lançados neste rio de emoções por uma madeirense, eis-nos agora perante a baiana que tem re-inventado a bossa nova vezes e vezes, sem fronteiras à vista.

Chamam a Rosa Passos "o João Gilberto de saias" e um crítico americano caracterizou-a como a mistura somada de Elis Regina e Ella Fitzgerald.

Pianista aos 5 anos, é exímia no violão e compõe as suas próprias inspirações. Tem actuado pelo mundo inteiro, por vezes com parceiros como Ivan Lins, Chico Buarque e Chucho Valdés.

Aqui, foi enquadrada por Fábio Torres no piano, Paulo Paulelli no baixo acústico e Celso de Almeida na bateria.

Era um dos grandes momentos esperados do Festival e, como já não admirava ninguém, ultrapassou as expectativas. De resto, o que tem sucedido sempre a Rosa Passos em todo o mundo. Ouvi-la faz-nos decidir a posição face ao velho slogan… porque "não é (definitivamente) a canção: é o cantor!"

Eu sei que não podem separar-se, mas "a canção" por Rosa não é a mesma canção por outro, nem sequer é a mesma por ela própria anteontem, portanto, se me permitem, repito: "é o cantor!" - porque, por muito que a paisagem seja arte da natureza, na tela do artista "é outra coisa"…

"GOSTAS DE JAZZ ?..."

Foi nessa noite que o meu telemóvel vibrou e tentei descrever para dois mil quilómetros o que se estava a passar ali. Dessa conversa, recordo o pormenor suscitado por uma pergunta…

- "Mas ouve lá, tu gostas de Jazz?"...

Nada mais definitivo e concerto que a resposta que me "saiu" sem mesmo medir as palavras:

- "Escuta, esquece se gostas ou não de jazz, ou se algum dia te interessou. Se chegares aqui, ao fim de dez minutos estás tão completamente fascinada como se tivesses acabado de te apaixonar!"

CHUCHO VALDÉS

E foi assim que se entrou na última recta, com uma das mais desejadas presenças no Festival: o cubano Jesus mundialmente conhecido por "Chucho" e aclamado em todos os continentes.

Fazer-lhe um breve retrato ocuparia mais espaço que todo este artigo, portanto direi apenas que começou a tocar piano aos 3, aos 14 já integrava uma orquestra, aos 15 tinha um grupo seu e aos 22 gravou o primeiro disco.

Arranjou tempo para frequentar o Conservatório e formar-se na Universidade das Artes de Havana.

Saltou para a fama internacional na Polónia, com 29 anos, recebeu 5 Grammies, colecciona elogios de figuras como Dave Brubeck, Paquito Rivera, Arturo Sandoval, Roy Hargrove e mais uns milhares que é impossível citar.

Tem doutoramentos "Honoris Causa" em Universidades de Cuba ao Canadá e incontáveis chaves de cidades por onde passou.

Recebeu o mais alto prémio das artes cubanas, actuou em Carnegie Hall, no Lincoln Center e no Hollywood Bowl, para citar um ou dois por cento dos palcos que já pisou em mais de 50 países e aproxima-se das seis dezenas de discos gravados. É considerado um dos melhores pianistas do mundo.

Passeia-se pelas raízes do jazz, da música clássica e de melodias de baile, a que acrescenta os primórdios tradicionais da sua terra e de gentes perdidas no tempo, em improvisos que emudecem e absorvem num convite à participação que contagiou a assistência em fim de festa.

Nessa noite, mais de três mil pessoas enchiam o recinto da Quinta Magnólia, não havia um ponto branco de cadeira vazia, filas ao longo do recinto e grupos compactados ao fundo mal deixavam espaço para relvados cheios de gente que ia ondulando posições ao ritmo de Chucho.

Lázaro Alarcón no baixo e Juan Carlos Rojas na bateria fizeram a moldura para uma percussão poucas vezes ouvida entre nós, com que Yaroldi Abreu criou uma onda de vibrações que possuiu o espaço e as pessoas.

Uma vocalista que se chame Mayra Caridad Valdés teria de provar as teorias da genética… e fê-lo. Irmã do virtuoso, deve viver-lhe a música desde a infância, mas ao ouvi-la percebe-se que tem de ser recíproco.

Foi uma actuação inacreditável, é daquelas coisas que não podem ser descritas, só mesmo tendo estado lá. Actuou, saiu e pouco depois disse que o palco a chamava e lá foi de novo para o centro das coisas.

Termino com uma explicação que fala por si: se o programa se tivesse cumprido, acabava tudo às onze e meia… mas duas horas depois ainda estávamos lá todos, a viver o eclodir de três dias de magia, prisioneiros do momento, suspensos no tempo, arrebatados !

HISTÓRIA

De grande acontecimento a um dos mais importantes eventos musicais do panorama nacional, foi um salto de qualidade que o Festival concretizou ao longo de nove edições consecutivas, desde 2000.

A família Valdés com a família autárquica funchalense

do Presidente Miguel Albuquerque

Dizem os organizadores que "a roda da História não pára", portanto para o ano cumpre-se a década. Digo eu que Miguel Albuquerque, o presidente funchalense que conheci durante o evento, tem um dedo de responsabilidade na coisa, dado que lhe percebi uma forte inclinação para apoio à cultura na autarquia e acho que deve ser, pessoalmente, um amante de música, a julgar pela aposta

Chucho Valdés com Avelino Tavares e Fernanda Galvão,

os organizadores do Festival de Jazz do Funchal

que já concretizou no Funchal e me garantiu que vai continuar... para não falar na maneira como o vi assistir a tudo.

Numa breve consulta ao painel de nomes que fizeram as 8 edições anteriores, somados aos desta, o Funchal Jazz "Magic" 2009 promete. Vai completar-se uma década de ouro!

A ORGANIZAÇÃO

Finalmente, uma palavra para os organizadores: com 36 anos de experiência de eventos musicais, a "Discantus - Sociedade Portuguesa de Música" não deixou nada ao acaso.

É desnecessário apontar o que esteve bem feito, porque foi tudo.

Repito apenas, porque acho de realçar, a frase com que me despedi de Miguel Albuquerque:

- "Sr. Presidente, vai decerto perdoar-me ter escrito anteontem na página internet da minha revista, sobre a organização do Festival, que uma empresa portuense não precisou de colher dos madeirenses lições de simpatia e hospitalidade!"

Para o ano há mais !

Veja aqui um pequeno clip sobre um momento do Festival


© PEDRO LARANJEIRA
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