 | PÁGINA DE IMPRENSA DE PEDRO LARANJEIRA |  |
19 março 2008 |
Grande Entrevista
António-Pedro Vasconcelos
uma conversa com Pedro Laranjeira
fotografada por César Soares
"Deseja tudo, espera pouco, não peças nada!"
...o homem a quem fascinam duas coisas na vida:
não resistir às tentações... e resistir às tentações...
PL - António-Pedro, costumas dizer que és "um outsider do cinema"… isso significa que não se consegue viver exclusivamente de cinema, em Portugal?
APV - Eu não, não consigo. Para viver de cinema tinha que realizar filmes com alguma regularidade.
Era necessário um mercado com vitalidade suficiente para suportar uma indústria onde as oportunidades dependessem dos méritos de quem trabalha.
Há vinte anos que tenho vindo a denunciar que em Portugal nunca os libertamos da tutela do estado, vivemos de subsídios, que são o único financiamento para a maioria dos produtores e realizadores.
Mesmo para aqueles que tentam alargar um pouco o âmbito do seu financiamento, com uma visão sobre cinema que lhes permita angariar algum dinheiro fora, o subsídio continua a ser a alavanca vital.
É IMPOSSÍVEL FAZER UM FILME
POR MENOS DE UM MILHÃO DE EUROS
Dir-me-ão, mas porque não ir buscar dinheiro aos privados?
É simples, Portugal é um país muito pobre, muito pequeno, com um mercado de cinema muito escasso.
Qualquer filme português tem que lutar contra o cinema americano.
Um filme é uma coisa cara, é impossível fazer um filme com um mínimo de qualidade por menos de um milhão de euros...
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António-Pedro Vasconcelos, 69 anos, cineasta, escritor, comentador desportivo, jornalista, professor.
Fez o primeiro filme em 1968, o último em 2007. Deu corpo ao chamado "Cinema Novo Português" com o filme "Perdido por Cem" (1973). Assinou alguns dos maiores êxitos do cinema nacional, com "O Lugar do Morto" (1984), "Jaime" (1999), "Os Imortais" (2003) e "Call Girl" (2007).
"Jaime" valeu-lhe a "Concha de Prata" do Festival Internacional de San Sebastian e os "Globos de Ouro" para o "Melhor Filme" e "Melhor Realizador".
No cinema, trabalhou já como produtor, argumentista, montador, actor e realizador.
Fez jornalismo para a "Visão", foi Chefe de Redacção do "Cinéfilo", Provedor do Leitor do "Rekord" e Director da "Semana" (suplemento do Independente).
Escreveu "Interesse Público, Interesses Privados" (2002), presidiu ao Conselho de Opinião da RTP, à Associação Portuguesa de Realizadores e ao Secretariado Nacional do Audiovisual.
Representou Portugal no estrangeiro, colaborou com o governo e com a União Europeia ("Livro Verde para a Política do Cinema e Audiovisual"), fez conferências e participou em congressos, aquém e além-fronteiras.
Leccionou na Escola de Cinema do Conservatório Nacional e é professor da Universidade Moderna.
Foi ordenado Cavaleiro pela Ordem do Infante D. Henrique.
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PL - O "Call Girl" custou um milhão e trezentos e cinquenta mil - donde veio esse dinheiro?
APV - Vieram 650 mil do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual) e o resto lá se conseguiu arranjar, através de um subsídio automático do produtor sobre filmes anteriores, das televisões - neste caso a TVI investiu no filme - do próprio produtor, que arriscou 200 mil euros, houve uma cooperação com o Brasil, a Lusomundo avançou também algum dinheiro, como distribuidor… mas tudo isso são dinheiros que depois são retirados às receitas.
Um filme, em Portugal, dificilmente se paga no mercado - e fora do país o cinema português é completamente desconhecido. Alguns passam em Festivais, mas isso não é trampolim para o mercado.
INTERVENÇÃO DO ESTADO É PERNICIOSA
O cinema português não tem potencial comercial, como tem o espanhol, por exemplo.
É débil, e foi ainda mais debilitado pela forma de intervenção do estado, que é perniciosa. Funciona como um eucalipto: os filmes subsidiados pelo estado em nome daquilo a que eu chamo uma política do gosto", com critérios estéticos pré-estabelecidos, fez com que o público se afastasse do cinema.
Hoje em dia o cinema português não tem credibilidade para justificar o investimento de qualquer privado.
"POLÍTICA DO GOSTO" É UMA ABERRAÇÃO
Houve duas ou três tentativas de produtores mais aventureiros, que fizeram filmes com intuitos claramente comerciais, como "O Crime do Padre Amaro" e o "Filme da Treta", com alguns resultados... mesmo assim, embora feitos com pouco dinheiro, ambos tiveram que ser suportados por televisões.
Eu defendo que o estado tem que intervir, porque é importante que as pessoas vejam cinema na sua língua, mas discordo totalmente da sua forma de intervenção.
A "política do gosto" é uma aberração.
São cinco iluminados que decidem quem é que merece o subsídio, em que não tens que dar contas dos resultados financeiros nem dos artísticos: podes fazer um filme que tem cem espectadores e no dia seguinte tens outro subsídio e fazes um filme que tem duzentos mil espectadores e a seguir és chumbado...
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E depois dá-se esta perversão: tens filmes que foram subsidiados por decisão de críticos, que depois se vêm obrigados a dizer que o filme é bom mesmo quando ele é mau.
Não te vou dar exemplos, mas se vires os filmes em cartaz que foram subsidiados, verás que há sempre um crítico pelos menos que estava no júri e esse normalmente tem uma voz muito mais activa que os outros.
Por isso é que eu já sugeri que os filmes subsidiados pelo ICA deviam ter no fim o nome dos cinco indivíduos que lhes deram o subsídio, e o telefone, para poderes pedir contas a esses cinco senhores…
É um sistema completamente perverso!
MUDAR DE VIDA OU MUDAR DE PAÍS...
Se houvesse uma indústria, eu teria condições para filmar com alguma regularidade e sujeitava-me aos resultados da bilheteira.
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Os filmes que tenho feito têm tido um bom acolhimento. Se amanhã deixassem de ter algum impacto junto do público, eu teria que mudar de vida ou mudar de país...
Podes perguntar-me: então porque é que não o fizeste? Não o fiz porque gosto de uma coisa e doutra: gosto do cinema e gosto de Portugal, tenho alguma dificuldade em abdicar.
SOU UM REALIZADOR BISSEXTO
Apesar de tudo, consigo fazer filmes de quatro em quatro anos, é por isso que digo que sou um realizador bissexto... De cada vez que estou para desistir, lá consigo um subsídio, lá consigo fazer um filme.
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Aquilo que sempre quis foi que o cinema fosse a minha profissão. Sou mais pela ideia da profissão do que pela ideia do "artista".
Tenho alguma desconfiança das pessoas que se auto-denominam artistas ou mesmo que falam no cinema como uma arte.
Acho que há nisso uma pretensão enorme.
O meu ofício é contar histórias através de imagens e de sons e serão o público e a posteridade a decidir se os meus filmes têm algumas condições para ficar na memória das pessoas.
Se são arte não me cabe a mim definir. Não gosto de rotular à partida se sou um artista ou não: sou profissional, gosto mais do termo profissional.
A POLITIZAÇÃO MATOU O CINEMA EUROPEU
PL - O cinema tem acompanhado os movimentos ideológicos, por exemplo: depois de maio de 68, em França, surgiu um "cinema militante", que queria "a rotura ideológica com o cinema burguês" ou "o uso da câmara como arma política". Isso teve alguma repercussão em Portugal?
APV - Teve e eu acho que foi trágico para o cinema. Essa politização, o realizador transformado numa espécie de "Che Guevara" foi desastrosa, matou completamente o cinema europeu.
Os resultados estão à vista: o cinema europeu tinha 65% do mercado, hoje tem 20.
Essa ideia de combater o gigante americano pelo método de guerrilha… quando não tínhamos nada que o combater, tínhamos que conviver com ele.
O trágico é que o 25 de abril surge numa altura em que o cinema europeu faz a inflexão e passa a defender o cinema politizado. A meu ver, isso fez com que o cinema português se dividisse entre um cinema militante, que tem um futuro efémero, e um enorme autismo, ou seja, um cinema virado para o umbigo. Tirando raras excepções, como o "Kilas" ou "O Lugar do Morto", o cinema português é autista e marginal.
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A sua corrente é virada de costas para o público e não tem nenhum impacto na sociedade, não reflecte a sociedade nem reflecte sobre a sociedade.
O ESTADO TEM UMA VISÃO "ECOLÓGICA" DO CINEMA
É um cinema excessivamente protegido. O estado, seja PS ou PSD, tem uma visão "ecológica" do cinema: considera-o uma espécie em vias de extinção, que é preciso proteger dos predadores industriais, ou seja: "é preciso proteger o cinema português do mercado", o que é um erro colossal.
É preciso que o estado, a intervir, crie condições para o que o cinema português possa viver no mercado e não retirá-lo do mercado. É um sistema iníquo, que nos debilita.
PL - Como foi a experiência de cinco anos, primeiro como Presidente e depois como Vice-Presidente do Conselho de Opinião da RTP?
APV - As experiências são sempre positivas. É assim que se cresce.
Vou fazer erros até morrer, mas é indesculpável repetir os mesmos. Aprende-se sempre - e uma das coisas que aprendi foi que não fazia sentido continuar a perder o meu tempo no Conselho de Opinião. Ele nunca teve meios para ser aquilo que devia.
Por uma atitude revanchista do ministro Morais Sarmento, foram-lhe retirados os únicos poderes que tinha e ficou reduzido a um órgão decorativo.
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Em Portugal nunca se ligou aos órgãos reguladores: a Alta Autoridade foi uma fantochada - hoje a ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social) tem um bocadinho mais de dignidade mas continua a ter pouco poder.
NOVO CANAL DE TELEVISÃO É UM SUICÍDIO
Até porque as regras do jogo são muito vagas.
Nós somos o único país europeu que abriu concurso para canais privados sem um claro caderno de encargos. Criou-se a noção, que subsiste, quando se fala no Balsemão ou na TVI, de que as televisões são deles.
Eles operam por um período limitado, a concurso e por licença.
As ondas hertzianas são um bem público, que é concedido, em determinadas condições, a operadores privados.
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A televisão é um meio demasiado poderoso para ser deixado totalmente à iniciativa privada.
PL - Agora prevê-se um novo canal...
APV - Que é outra loucura, um suicídio, uma medida completamente irresponsável do governo. É uma cedência aos lobbies da comunicação. Não há financiamento para os canais existentes.
FILIPE MENEZES, PORTA-VOZ DOS PRIVADOS
Logo que soube desta notícia escrevi que a primeira medida que os privados iriam propor era a abolição da publicidade na televisão. Uma semana depois, de uma maneira irresponsável, o putativo primeiro ministro do PSD, o Dr. Luís Filipe Menezes, veio propor, como porta-voz dos privados, que se abolisse a publicidade nos canais públicos.
É uma medida demagógica e inviável, porque, como sabes, até 2012, o governo anterior estabeleceu um acordo com um sindicato bancário irlandês para que a dívida colossal que o Guterres deixou crescer na televisão fosse paga através da publicidade, portanto a publicidade está cativa até essa altura.
O que tem sido feito em televisão tem sido por pessoas que não têm a menor noção do que estão a fazer.
A TELEVISÃO SEMPRE FOI CONSIDERADA A VOZ DO PODER
PL - A televisão está instrumentalizada pelo governo?
APV - Eu acho que está, na medida em que as administrações são nomeadas pelo governo. A televisão foi um instrumento político do Salazar e do Marcello, nos telespectadores sempre foi considerada a voz do poder. Depois do 25 de abril, todos os partidos que estiveram no poder tiveram a tentação de a controlar. Nunca se livrou disso e nenhum governo se chegou à frente para criar condições para que o serviço público fosse um instrumento forte, independente e credível. Isso passaria por dar força ao Conselho de Opinião e os próprios jornalistas teriam que ter maior ou menor capacidade de resistir à tentação de receber recomendações dos governos.
A INFORMAÇÃO MELHOROU
Mas acho que a televisão, em termos de informação, melhorou, na credibilidade, na sobriedade e na aparência de não ser uma correia de transmissão das políticas do governo.
A informação é uma área sensível, é a mais manipulável e a mais manipuladora. Por exemplo, na primeira guerra do Golfo a informação foi completamente manipulada para convencer os americanos de que era necessário, urgente e justo invadir o Kowait… A única maneira de resolver os problemas da televisão é criar duas coisas: uma é um serviço público forte e independente, e a outra é uma regulação dos canais privados, através de uma instância reguladora e com coimas fortíssimas sempre que houver prevaricação em relação á informação.
PL - ...o que não é o caso?...
APV - O que não é o caso! Em Portugal não existe nem uma coisa nem outra.
VALE E AZEVEDO FOI ELEITO PELA SIC
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Nós temos um exemplo: a SIC, no tempo do Rangel, elegeu um presidente. Não foi um presidente da república, mas foi um presidente importante, o presidente do Benfica. O Vale e Azevedo é pura e simplesmente eleito pela SIC, ao serviço da SIC.
É eleito para rasgar os contratos com a Oliverdesportos e passar a transmissão dos jogos do Benfica para a SIC… só isto! É eleito pela televisão! Curiosamente, depois é apeado também pela televisão...
PL - ...mas isso não é inédito, a TV Globo elegeu o Collor de Melo e depois retirou-o...
APV - ...é verdade, é evidente! Mas as pessoas em Portugal não acreditavam que isso fosse assim.
A TV Globo tem um poder enorme no Brasil, provavelmente como nenhuma outra televisão no mundo, a não ser, claro, as televisões públicas nas ditaduras.
...E APEADO PELA TVI
Curiosamente, em Portugal, o Vale e Azevedo é eleito pela televisão - pela SIC… e apeado pela televisão - pela TVI.
Devemos isso ao "Big Brother" que permitiu à TVI fazer concorrência à SIC e ultrapassá-la, e é graças à subida de audiências da TVI que é possível apear o Vale e Azevedo.
A TVI aposta claramente no Vilarinho (há o célebre abraço do Eusébio ao Vilarinho, que é encenado e planeado com a TVI), e isto é um exemplo claro - que não é despiciendo, porque o presidente do Benfica é importantíssimo neste país - é um exemplo claro do poder das televisões.
Se esse poder for deixado à solta é uma ameaça para a democracia.
OS TELEJORNAIS NUMA TELEVISÃO PRIVADA NÃO SERVEM PARA INFORMAR
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PL - Há uma promiscuidade que é facilmente aceite pelo povo e que tem que ver com o "Big Brother", porque quando chegou a Portugal tinha já corrido em 27 países, mas este foi o primeiro - e o único - em que o que se passava no "reality show" era transportado para o espaço nobre da informação, o que é uma promiscuidade...
APV - Completa. Exactamente! Repara: em todo o mundo, o público tem o "jornal das oito", normalmente de meia hora.
Não é por acaso que a directiva da "Televisão Sem Fronteiras" legislou que era proibido a publicidade interromper os telejornais - porque tinham meia hora.
Os telejornais numa televisão privada não servem para informar.
Servem para duas coisas: para marcar a agenda política, o que interessa defender, que políticas, que pessoas - até a própria hierarquia das notícias.
É por aí que as televisões têm o peso que têm no país, inclusivamente político… e servem também para fixar o público ao prime-time, que é o que vende publicidade, é o "core business" das televisões - portanto, se tens o "Big Brother" e o "herói" Zé Maria, tens que fazer o telejornal para o público do Zé Maria…
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A TRAGÉDIA DE ENTRE-OS-RIOS MARCOU A MUDANÇA
Por exemplo, o Balsemão não poderia fazer um jornal tipo "Expresso" às oito horas, com alguma seriedade, e depois "reality shows" ou novelas brasileiras. Não é possível. Tem que procurar o mesmo público.
Penso que uma das coisas que marcou a mudança da televisão, no plano da informação, foi a tragédia de Entre-os-Rios, explorada de uma maneira indecorosa, despudorada. Foi a partir daí que os telejornais passaram a ter uma hora e mais, portanto interrupções de publicidade e auto-promoção.
Em todo o mundo, o prime-time é ficção e boa informação - em Portugal são concursos, reality shows e telenovelas…
Está envolvido muito dinheiro e criou-se nos privados a noção de que as televisões são deles e não têm contas a dar… há uma promiscuidade, uma invasão de espaços que deviam ser nitidamente separados, que é perigosa.
Já percebi que não há nada a fazer! Tenho um lado quixotesco, mas QB...
O GOVERNO PERDEU O MOMENTO...
Houve um momento que o governo perdeu completamente, o da renovação das licenças.
Seria precisa coragem e autoridade.
Era a altura certa para dizer "meus senhores, estamos dispostos a voltar a dar-vos as licenças, mas com um caderno de encargos muito claro e uma instância reguladora".
O problema é que a SIC e a TVI já tinham um espaço tão forte que facilmente fariam demagogia com um governo que tentasse interferir.
PL - Têm poder sobre o próprio governo?...
APV - Exactamente. Isso aconteceu em Itália. O Berlusconi é dono das três televisões privadas. Quando houve o referendo que poderia fazê-las mudar de mãos, dramatizou a situação. O boletim meteorológico foi alterado e anunciou-se chuva no fim de semana, para as pessoas ficarem em casa … Se as televisões adquirem demasiado poder e não são controladas, a manipulação é de tal ordem que depois é muito difícil aos governos agir. Portanto, o grande momento foi o da renovação das licenças.
MANOEL DE OLIVEIRA
PL - Vamos voltar ao cinema. Como é que comentas o fenómeno Manoel de Oliveira?
APV - É-me difícil comentar um senhor que vai fazer cem anos e por quem pessoalmente tenho todo o respeito.
O Manoel de Oliveira é um caso Guinness… eu digo sinceramente - e peço publicamente aos meus amigos que no dia em que eu já não tiver condições de fazer filmes, me digam, me avisem...
Acho que ninguém avisou o Manoel de Oliveira. Houve uma altura em que a sua obra deixou de trazer alguma coisa... eu costumo dizer que há vinte anos que ele faz filmes póstumos...
O problema foi ter sido canonizado em vida e perdeu com isso, porque deixou de haver um escrutínio público, um escrutínio crítico - não há um único crítico que se atreva a dizer que os filmes do Manoel de Oliveira não são obras-primas, mesmo antes de estarem feitos...
Para mim, o último grande filme dele foi "Os Canibais".
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Depois do 25 de abril, quase todos os meus colegas acharam que ele não devia ser apoiado - e eu andei a bater-me, durante anos, para que ele continuasse a fazer filmes, porque achei que estava na força da sua carreira e era um realizador inovador, que tinha alguma coisa para dizer.
Curiosamente, nessa altura ele era completamente atacado em Portugal. Eu e o Paulo Branco fizemos o que pudemos para promover os filmes dele no estrangeiro. O "Cahiers du Cinema", em Paris, pôs um na capa e fez críticas elogiosas, a partir daí passou a ser intocável. Passou a haver uma recepção acrítica à sua obra. Acho que isso deu cabo da carreira dele.
Passou a fazer um filme de nove em nove meses, mas isso fê-lo perder a consciência crítica.
É pena, mas iludir isto é mentir às pessoas. O que neste momento se está a considerar é a longevidade, mas isso só por si não é uma qualidade. O próprio Bergman em determinada altura achou que tinha dito tudo o que tinha a dizer e retirou-se.
Sinceramente, acho que isto é um pouco cruel, mas é também a decepção de alguém que viu o Manoel de Oliveira, quando fez a tetralogia ("O Passado e o Presente", a "Benilde", o "Amor de Perdição", a "Francisca" e mesmo "Os Canibais", que acho que são grandes filmes e mantém todo o vigor) e vê-lo depois cair numa bulimia em que as qualidades se vão perdendo.
O CINEMA EUROPEU FAZ FALTA AO AMERICANO
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PL - Como é que reages à afirmação de que és "o cineasta português mais americano"?
APV - Reajo bem, porque acho que foram os filmes americanos que me fizeram gostar de cinema. Nos anos 60 havia uma pujança do cinema europeu e o americano estava de rastos, depois quando surgem os cineastas dos anos 70 que renovam o cinema americano, eles reclamam-se do europeu.
PL - Este ano a Academia atribuiu todos os prémios de representação à Europa...
APV - Felizmente. São boas notícias. O cinema europeu faz falta ao americano. Estes prémios são sinais disso. Há uma nova vaga, de uma esquerda americana, que tem muito de europeu, no melhor sentido.
PL - Falemos do "Call Girl": estás satisfeito com o resultado?
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APV - Bom, já fez carreira. Os filmes hoje em dia têm uma carreira rápida e seguem para outras formas de difusão. Vai passar na televisão e sair em DVD. Mas foi bom. O que eu gostava agora é que tivesse também uma carreira internacional. O sonho de qualquer realizador á ultrapassar as suas fronteiras.
PL - Como é que reagiste à crítica, como é que criticas a crítica?
APV - Nunca respondi directamente à crítica, acho que é deselegante, a crítica tem o direito de dizer o que quiser. Os meus filmes nunca foram afectados por ela, nem para bem nem para mal.
NÃO É A CRITICA QUE LEVA O PÚBLICO A VER FILMES
Com excepção do "Público", que é tradicionalmente o jornal onde os meus filmes são mais atacados, tive muito boas críticas, vá lá...
Mas não é a crítica que leva o público a ver filmes, nem quando os ataca faz com que os não vão ver.
PL - No filme há velhas-guardas da representação portuguesa, mas há também novos valores, como o Ivo Canelas. Está aí a aparecer uma nova geração de actores?
APV - Sempre houve grandes actores e actrizes em Portugal. O problema está na oferta… que oportunidades tem um grande actor de fazer carreira em Portugal? Nenhuma!
A SORAIA FOI UMA GRANDE DESCOBERTA
Neste filme, trabalhei com actores extraordinários: o Nicolau Breyner, o Joaquim de Almeida, o Ivo Canelas, o José Raposo. Com alguns nunca tinha trabalhado, como o Ivo Canelas, que é um actor fantástico.
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A Soraia Chaves foi uma das grandes descobertas da minha vida. Quando vestia as roupas da personagem, vestia-lhe também a pele, vestia-lhe também a alma.
O problema é que em Portugal não há oportunidades para os actores. Por exemplo, o Nicolau: é um actor do outro mundo, sempre foi, mas se ficasse à espera de ter bons papéis no cinema, para se afirmar, já tinha morrido de fome... e de frustração!
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PL - A televisão não é saída?
APV - Olha, é saída para mim no "Trio de Ataque" a comentar o futebol, isso sim! Prefiro-o a ser obrigado, para ganhar a vida, a fazer obras menores.
PL - …mas quando se filma ganha-se bem?
APV - Não! Ah, há quem ganhe, o Oliveira ganha bem, tudo depende do contrato.
Eu normalmente não exijo muito em termos de salário, porque quanto mais ganhar menos há para o filme e o importante é o que se vê no ecrã.
O dinheiro não é elástico e consegue-se pouco para fazer cinema, prefiro que isso esteja no ecrã.
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GANHO A VIDA COMO COMENTADOR DESPORTIVO
Eu filmo "no defeso": quando pára o campeonato, até quando começa - só nesse período é que posso filmar.
Equipa do Trio de Ataque: António-Pedro Vasconcelos, Rui Oliveira e Costa, Carlos Daniel e Rui Moreira
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Não ganho a vida no cinema, ganho-a como comentador desportivo - se deixar isso para fazer um filme, quando acabar fico desempregado… portanto só posso filmar no defeso e nos anos ímpares, porque nos pares há o europeu e o mundial.
PL - Os portugueses gostam de cinema, ou ficam-se pela televisão?
APV - Gostam de cinema, mas não de cinema português, pelos vistos…
PL - Que falta ao cinema português para chegar aos Óscares da Academia?
APV - Falta-lhe ser uma indústria, internacionalizar-se.
"DESEJA TUDO, ESPERA POUCO, NÃO PEÇAS NADA!"
APV - É o meu lema, cada vez mais! É uma frase de Stendhal, que adoptei porque sou exactamente isso.
PL - Outra afirmação tua: "Há duas coisas na vida que me dão prazer: não resistir às tentações... e resistir às tentações!"
APV - Acho que é totalmente verdade: de vez em quando preciso de fazer coisas insensatas, por exemplo comprar algo que me esgota o orçamento e depois ter que apertar os cordões à bolsa… e tenho prazer nisso. Não gosto de uma vida muito regrada.
A ideia de um ordenado e uma reforma é coisa que me passa completamente ao lado.
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Nunca pensei na reforma, porque nunca pensei em não trabalhar…
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Por outro lado, às vezes tenho orgulho em resistir às tentações. Quando o risco é demasiado, dá-me imenso prazer resistir. São dois extremos que equilibram a minha vida.
AS MONARQUIAS ESTÃO EM CRISE
PL - Além da paixão pelo Benfica, que outras ideologias tens?
APV - Sou republicano, mas acho que o problema do regime não passa por aí. A Espanha funciona muito bem, a Inglaterra também, mas as monarquias estão em crise, porque estão muito expostas.
A Princesa Diana ou a Letícia vêm nas capas das revistas cor-de-rosa: isso, a prazo, é letal para as monarquias.
DEUS?... NÃO CONHEÇO!
Sou um democrata convicto, sou um homem de esquerda. Tenho muitas paixões, gosto de ler, de viajar, de estar com os amigos. Gosto dos meus filhos e dos meus netos. Sou um homem de família, mas também ou um vagabundo!
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PL - ...e Deus?
APV - Não conheço. Não faz parte da minha vida. Desapareceu do meu horizonte a partir dos 18 anos e da idade da razão.
PL - Não quero terminar sem falar da tua fama de "mau feitio", que tem a ver essencialmente com as tuas posições sobre fundamentalismos...
APV - Por acaso não tenho mau feitio, até é bom! Mas não resisto a ser polémico e ter opiniões fortes em certas circunstâncias.
UM UNIVERSO EM QUE NÃO QUERO VIVER
Chocam-me, por exemplo, a ASAE e a Lei do Tabaco.
Há muitos restaurantes que decidiram abrir a fumadores, com bons resultados.
Eu não sou fumador, mas quero estar com os amigos que são. Interfere-se excessivamente na liberdade das pessoas.
No Hospital acho bem, ou numa repartição pública, agora nos restaurantes, nos bares, nos casinos, nas discotecas... é deixar a decisão ao proprietário e ele corre o risco.
Agora quer-se regular piercings, tatuagens, esterilizar cães perigosos, na Nova Zelândia os gordos já não entram… isto é um universo em que eu não quero viver!
Tem que se responsabilizar as pessoas. Em relação aos cães, o proprietário que tenha um cão agressivo que chegue a vias de facto, deve ser altamente penalizado, eventualmente com prisão. As pessoas devem saber os riscos que correm, mas o princípio da liberdade é absolutamente inatacável.
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A ASAE É COMPLETAMENTE FUNDAMENTALISTA
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Em relação à ASAE, acho que se passou uma fronteira, entre aquilo que são cuidados com a higiene e a destruição dos hábitos e gostos da cozinha tradicional.
É completamente fundamentalista!
VÃO DESTRUIR OS SANTOS POPULARES
Outro dia fui a um restaurante no Alentejo, onde gosto de comer bacalhau no forno - de repente ele estava mau e o proprietário disse-me: "É simples, deixei de poder demolhar o bacalhau em casa, tenho que o comprar já demolhado".
Outro amigo meu que tem um restaurante alentejano está a pensar ir-se embora de Portugal.
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Já nem pode fazer açorda, porque não pode guardar o pão da véspera...
Isto é uma demência!
Se não se podem assar sardinhas na rua, vão destruir os Santos Populares...
Isto é sintomático de uma coisa: em Portugal há Estado a menos onde o Estado devia ser forte e Estado a mais onde não devia intervir.
Nas áreas onde é fundamental, na justiça, no ensino, na saúde, na segurança… não há Estado!
E depois há Estado a mais em situações ridículas, onde não devia meter-se, para disfarçar a sua fraqueza nas áreas onde devia ser forte.
PL - Planos para o futuro...
APV - Filmar, filmar! Fazer filmes fora de Portugal ou que passem fronteiras e sejam vistos noutros países.
ERA PRECISO UM PRIMEIRO-MINISTRO ILUMINADO
PL - Mensagem de despedida…
APV - Era preciso um primeiro-ministro iluminado, que percebesse que há tudo a fazer em Portugal em relação à intervenção do estado no cinema e na televisão.
Tem-se feito tudo ao contrário, somado disparates, perdido anos de vida, dizimado gerações.
A intervenção do estado não pode ser laxista no caso da televisão e totalitária no caso do cinema.
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É preciso encontrar uma relação entre as duas actividades - e as telecomunicações - e criar uma política que finalmente abra perspectivas aos criadores, com oportunidades à altura dos seus méritos e onde o talento seja premiado.
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