PÁGINA DE IMPRENSA DE PEDRO LARANJEIRA 21 novembro 2007

CÉLIA SOUSA,

  A PIONEIRA

Uma iniciativa de Portugal para o Mundo

Facultar o acesso de pessoas portadoras de deficiência à Sociedade de Informação transformou-se no objectivo de vida desta professora de Leiria, que vive dedicada a uma causa cuja importância só agora o mundo começa a perceber!

É tão notável o projecto de Célia Sousa, que ela presentemente divide-se entre seminários e conferências, formação e acções técnicas, cooperação com Hospitais e autarquias, bem como iniciativas na área da investigação científica, isto, na sua maior parte, em trabalho voluntário e horário pós-laboral, por todo o país e pelo estrangeiro. Colabora com investigadores de vários países da União Europeia e membros do executivo português. Foi convidada para apresentar o projecto em Pequim, revelou-o numa Conferência Internacional em Madrid, leccionou perante representantes das comunidades científicas do Canadá e da América Latina, com grande aceitação e inusitado interesse por parte dos intervenientes, mantém conversações com os governos de Cabo Verde e Moçambique e vai dar formação no México, em abril próximo. Através da célula pioneira com que iniciou o projecto CRID, Centro de Recursos para a Inclusão Digital, na Escola Superior de Educação de Leiria, conduziu já um trabalho multidisciplinar de alunos de vários escolas do Instituto Politécnico de Leiria que deu origem a um livro infantil em formato acessível a todos (Braille, áudio, relevo e SPC), bem como ao desenvolvimento de software específico para acessibilidade, ambos em processo de registo de patente. Também dali nasceram iniciativas como uma volta a Portugal para distribuição de brinquedos adaptados, alterações curriculares a cursos nas áreas da saúde e da engenharia biomecânica e o projecto de um adaptador universal para brinquedos destinados a crianças especiais, que é único a nível mundial.

PL - Deficientes... quantos são, em Portugal?

CS - Calculo que um décimo da população portuguesa tem algum tipo de deficiência, ou de nascença ou adquirida. Cada vez existe mais deficiência adquirida, devido aos acidentes e aos acidentes vasculares. Mas não só em Portugal: está provado que dez por cento da população planetária tem deficiência.

PL - ...e como é que o nosso país os trata?

CS - A sociedade civil trata-os mal, porque não respeita a diferença, não os aceita, descrimina, aponta o dedo.

PL - É verdade que as pessoas, à semelhança do que acontece em relação à pobreza, se sentem incomodadas e preferem olhar para o outro lado?

CS - Olham para o outro lado, mesmo! Viram a cara, se for possível. Não ajudam invisuais, ignoram os deficientes motores e nem sequer olham para os deficientes mentais e para os autistas.

PL - O número de deficientes está aumentar ou a diminuir?

CS - Está a aumentar. Principalmente o de deficientes muito graves, casos muito complicados. O envelhecimento da população contribui para isso: é preciso pensar na idade maior, que cada vez mais tem problemas relacionados com a deficiência. Quem contrai alzheimer fica com um défice cognitivo, logo precisa de cuidados especiais. Com a velhice, diminui a mobilidade, logo há uma deficiência motora, bem como problemas de visão e de audição.

Lógico era que os governos - isto não é um problema português, é um problema europeu e mundial - começassem a pensar em sociedades inclusivas, desde o início, desde a construção do prédio, as repartições públicas, as infra-estruturas comerciais.... mas não pensam. Não são só os deficientes que têm dificuldades: então e as mães que se deslocam com carrinhos de bebés? Não se pensa neste tipo de solução.

É um problema transversal a toda a sociedade. Resolvê-lo contribuirá para a própria economia. É necessário preparar acessibilidades a todos os níveis, desde o arquitectónico ao informático. Tudo tem que ser acessível a todos!

PL - Que diz a legislação?

CS - Existe já legislação desde 1997, recentemente actualizada, que penaliza todas as pessoas envolvidas na construção civil, desde o arquitecto ao construtor, que podem ficar dois anos impedidos de exercer.

Esta é uma lei boa, como existem muitas no nosso país, a nível das pessoas com necessidades especiais. O problema é que depois não a conseguimos colocar em prática.

No entanto, para prédios antigos, não conheço legislação nem sanções...

PL - E aqueles estacionamentos reservados a deficientes?...

CS - A legislação existe, não há é fiscalização adequada.

Por exemplo, nas superfícies comerciais, é terrível ver somo as pessoas têm capacidade de deixar ali o carro, sem pensar que pode chegar alguém numa cadeira de rodas - é muito frequente.

Já fiquei a observar e vejo entrar para esses carros pessoas sem problema algum, incluindo jovens, o que é grave, porque prova que não estamos a conseguir mudar mentalidades.

Temos obrigação, como cidadãos, de lhes chamar à atenção,

Estacionar um carro num local reservado a deficientes é, no mínimo,

uma falta de respeito, mas estacioná-lo atravessado a ocupar dois

lugares... desafia a compreensão! Onde pára a polícia?...

nem que isso nos custe alguns momentos desagradáveis. Já o tenho feito; e quando não vejo as pessoas, deixo um papelinho... mas vale a pena ficar no carro e ver a reacção das pessoas!

PL - Aí está uma sugestão... Outra coisa: o acesso à informação, jornais, revistas, livros?

CS - Jornais nada! Filmes nada! Revistas, há apenas a Visão que de quando em quando faz edições em Braille.

PL - Filmes?

CS - Apenas conheço o caso da Lusomundo, que lançou agora o primeiro filme em DVD, com áudio-descrição e legendagem especial. As televisões públicas já vão incluindo linguagem gestual e legendagem para surdos em alguns programas, principalmente a RTP 2, e a SIC fá-lo em novelas. É discutível se será o melhor programa, mas de facto acontece.

Já se está a caminhar, mas ainda há muito a fazer a esse nível.

PL - Quais são as maiores carências?

CS - A área de maior carência tem a ver com as respostas depois de terminada a escola. Até ao 12º ano a lei é adequada, mas depois no ensino superior não há qualquer legislação que os proteja.

PL - Dizia-me antes desta conversa que as pessoas ficariam surpreendidas com a capacidade de integração de deficientes mentais? Explique-me lá isso...

CS - O deficiente mental pode ser um cidadão perfeitamente válido, se for intervencionado desde que nasce, tanto na áreas do conhecimento como a nível motor, pode adquirir rotinas e exercer uma profissão como qualquer um de nós - até melhor. Certamente não será um professor ou um médico, mas poderá ser um bom funcionário fabril, numa actividade mecanizada - pode-o fazer na perfeição. Aliás, os empresários que têm experimentado, depois nunca os querem perder, porque percebem que eles podem dar uma rentabilidade muito melhor que os outros.

PL - Se dez por cento da população é portadora de deficiência, que percentagem desse total pode ter plena integração na sociedade?

CS - Noventa por cento!

PL - E o acesso à Sociedade de Informação?...

CS - Há equipamentos e tecnologia. Mas são dispendiosos! Ainda estamos longe, na nossa sociedade, de achar sequer que o deficiente tem esse direito. Por exemplo, uma Biblioteca: deveria estar preparada para todos, incluindo computadores que permitam o acesso à internet, como a qualquer cidadão. Um cego precisa de software especial... são coisas que não são pensadas de início. Ainda nos falta caminhar muito!

PL - Mas a usabilidade que todos temos da internet e da informática, está ao alcance dos deficientes?

CS - Tudo está ao alcance de qualquer deficiente, com o equipamento correcto.

PL - E aí a legislação também está adequada?

CS - Não, não existe, no geral. Os próprios sites não são pensados para pessoas com necessidades especiais: mesmo que o deficiente tenha o equipamento adequado, não pode aceder à maioria dos sítios da internet, dependendo da sua incapacidade.

Nesta matéria, no entanto, Portugal fez muita pressão sobre a União Europeia no sentido de tornar acessíveis os portais públicos, do estado, e foi o segundo país a introduzir legislação para que o sejam.

PL - ...e são?

CS - Alguns só têm o símbolo...

PL - Chegam ao nosso mercado muitos DVDs com áudio-descrição ou legendagem para surdos...

CS - ...mas não em português. Esta experiência da Lusomundo é a primeira em Portugal, mas estão já a pensar em fazê-lo por norma nos filmes infantis. Há ainda outra lacuna: os livros. Existem muito poucos áudio-livros ou em Braille, para crianças não há quase nada.

Também os brinquedos são um problema. Não existe ninguém em Portugal a fabricá-los e têm sempre que ser adaptados. Há uma empresa e um grande grupo comercial a pensar avançar por aí... esperemos que aconteça. Seria desejável que os fabricantes de brinquedos usassem uma parte dos seus lucros para pensar neste tipo de crianças.

Importante era que os jovens sensibilizados para isto montassem uma empresa: há estudos que provam que estas empresas são rentáveis.

PL - Para terminar: um recado para o governo, outro para a sociedade?

CS - Para a sociedade: tem que ser cada vez mais tolerante! Não basta um gesto de caridade, temos que aprender a viver com a diferença. Qualquer um de nós pode ficar naquela situação e portanto tem direito a ser respeitado como ser humano!

Para o governo: leitura positiva, mas tem que caminhar muito, ainda. Reconheço que tem feito um esforço grande, mas ainda há muito para fazer: haverá sempre muito para fazer!

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