A FUNDAÇÃO FILOS É UM POLVO DE MIL TENTÁCULOS, por Pedro Laranjeira
Longe vão os tempos em que o Padre Maia juntava a sua voz aos protestos de Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e do seu próprio colega Fanhais...
... chegou a cantar o "Grândola" durante a missa!
Tem um percurso de vida preenchido com actividades tão diversas como religião, música, ensino e trabalho humanitário.
Desde que terminou os estudos em Roma, fez da região do Porto o seu jardim pessoal, que tem regado e cultivado numa vida sem tempos livres.
Deu aulas no centenário Colégio dos Carvalhos, de que hoje é Presidente, e logo aí deixou uma marca de diferença na construção de um estabelecimento de ensino de excelência, que faz inveja a muitos.
Fundou a Paróquia da Areosa (que então era a segunda zona do país com maior delinquência infantil), editou discos sobre a revolução de abril, o Natal e as mães solteiras, chegou a ir para Lisboa desempenhar funções de direcção na sua congregação religiosa, sem nunca tirar os olhos - e o trabalho - do Porto, mas aquilo em que mais se destacou, durante 14 anos, foi como Presidente da União das Instituições Particulares de Solidariedade Social, um universo de mais de 3.500 instituições, servidas pelo trabalho de 60.000 pessoas, mais de dois terços da acção social do estado.
Ficam a dever-se-lhe a Fundação Claret, um órgão de intervenção social junto de crianças, e a Fundação Filos, que dirige, vocacionada para trabalho social nas áreas de formação, prevenção junto das populações jovens, desemprego, ocupação de tempos livres, atendimento social, acolhimento e encaminhamento de toxicodependentes, sem-abrigo e idosos sós, entre muitas e difíceis áreas de intervenção...
HÁ PARA AÍ MUITO SOCIALISTA ESTRAGADO!
Desde logo percebi que há aqui muito trabalho a fazer. Começámos no Bairro S. João de Deus e estamos já também no Lagarteiro. Damos guarida às populações que tenham vontade de se inserir e deixar outros ambientes - esta é a razão de ser da Fundação, que existe já há 12 anos.
PL - O seu trabalho na Fundação transcende as suas obrigações de sacerdote?...
PM - A Fundação é uma organização de solidariedade social. A nossa filosofia é "o outro é a nossa alma gémea".
PL - Mesmo que não seja da mesma religião?...
PM - "O outro!" - seja quem for! A palavra "social" quer dizer "o outro" - o socialista, o bom socialista, é aquele que se preocupa com o outro, não o que tem o símbolo na lapela! Há para aí muito socialista estragado!
A Fundação especializou-se em áreas concretas. Organizou-se, por exemplo no que chamamos "Balcão Social", que é uma espécie de "Loja do Cidadão" para aqueles que estão ainda num patamar muito inferior.
O NOSSO GABINETE É A RUA
Por aqui passaram, no último ano, mais de quinhentas pessoas, que foram atendidas em pedidos de emprego, formação profissional, apoio jurídico, encaminhamento. Temos um programa na Rádio Festival e somos parceiros da RTP 2, porque temos a preocupação de dar vez e dar voz. Preocupamo-nos com a prevenção, como projectos para ocupar as crianças. Os nossos técnicos são patrulhadores da rua - o nosso gabinete é a rua.
Cristo, o fundador da nossa Igreja, ensinou que se "condena o erro, mas absolve a pessoa". É essa a importância da humanização.
INTERVENÇÃO NA ÁREA "DA PESADA"
A Fundação não vai fazer tudo, elegeu como preferencial ter aqui um Balcão onde as pessoas recebem um atendimento personalizado. Neste momento, estamos a apoiar 360 famílias com RSI, o Rendimento Social de Inserção. Estamos também na área da toxicodependência. Existem aqui cerca de 1.500 toxicodependentes que são acompanhados pelas nossas equipas de rua, é uma intervenção social na área "da pesada". É na rua que nos encontramos com as pessoas. As equipas de rua fazem um diagnóstico que não é de papel nem de computador. O Sócrates não me viu dar nenhum computador aos toxicodependentes da rua, mas eles também merecem oportunidades. O nosso papel é ver de que precisam, depois temos carrinhas e técnicos que os encaminham. Nós não tratamos, encaminhamos. Existem problemas de saúde pública, relacionados com HIV e tuberculose, temos um trabalho imenso, que consiste em encaminhá-los para unidades de saúde e seguir-lhes o percurso.
PROSTITUIÇÃO INFANTIL
PL - Há problemas de prostituição infantil no Porto?
PM - O Porto sempre teve problemas de delinquência infantil, houve tempo em que era a mendicidade, depois vieram os sem-abrigo, depois os do leste. Isto deriva essencialmente de desagregação familiar e já o denunciei. Há um conjunto de práticas políticas, tanto do estado como da autarquia, que geram fenómenos de desenraizamento das crianças. Por exemplo, os realojamentos entre bairros, as mudanças de escola durante o ano, são fenómenos que, se não forem bem acautelados - e não são - desenraízam as pessoas... e pessoas desenraizadas estão vulneráveis a muitas coisas.
OS "GANGS": NÃO VAMOS ESPERAR FLORES OU BEIJOS!
PL - Está a falar de portugueses, ou de comunidades de imigrantes?
PM - Portugueses, essencialmente. Temos hoje a violência dos "Gangs", mas há uma nova geração de jovens violentos que são jovens desenraizados dos bairros. Há muitos na rua, sem emprego, que são aliciados tanto para ser correios de droga como para outras coisas. São o produto de desestruturação da família. Quando a família e a escola os atira para a rua, é na rua que se vão organizar e criar as suas próprias regras, não vamos esperar de gente escorraçada para a rua que nos venham oferecer flores ou beijos!
Estamos a correr o risco, no caso do Porto, de haver jovens sem projectos de vida, desinseridos de tudo, sem raízes, muito sensíveis a quem os quiser levar. Há uma nova geração de assaltantes que é gente jovem desinserida das famílias, da escola e dos bairros.
As políticas de ordenamento das cidades e, sobretudo, das periferias, não têm em conta estas realidades.
A Fundação Filos actua nestas áreas, na reinserção destes jovens através de oportunidades que os motivem.
DIMENSÃO SECURITÁRIA vs HUMANITÁRIA
Não se deve tentar inserir os jovens pela via policial, deve-se fazê-lo pela via motivacional.
PL - No caso do Porto, há falta de dinheiro, falta de vontade política ou processos errados?
PM - Que as políticas sociais para a reinserção da juventude ou não existem ou são desadequadas, é verdade! A questão está em ir buscar estes jovens à exclusão e trazê-los para a inclusão. Isso não se faz escorraçando-os! A inserção é a arte de remendar as relações pessoais. Reinsere-se com afectos! Já me aconteceu, com jovens muito violentos, depois de uma conversa, vê-los a chorar. Há uma dimensão securitária, que visa garantir a segurança das populações, e tudo se faz em função disso. Mas há depois a dimensão humanitária. O ideal seria compatibilizá-las.
PROMETI À CÂMARA DO PORTO QUE DURANTE UM ANO ESTAVA CALADO...
No caso do Porto: entendo que o Presidente da Câmara é um homem sério, que procurou a coesão social como referência, só que se a coesão social não for feita por reinserção, não é atingida. Ou seja, pode dizer-se que se quer coesão, mas depois ter políticas que não conduzem a ela.
Os realojamentos entre bairros sociais pecaram por estes erros.
Eu prometi à Câmara do Porto que durante um ano estava calado, que não seria por minha causa que a cidade ficaria pior... estive calado, mas não mudou nada!
UMA MORADORA DEU UMA VALENTE TAREIA NUMA TÉCNICA NOSSA
Um exemplo é o Bairro de S. João de Deus, ainda ontem uma moradora deu uma valente tareia numa técnica nossa. Ou seja, a Câmara do Porto demoliu aquelas casas todas e não prestou a mínima atenção a quem lá mora nem às instituições que lá trabalham. Uma Câmara nunca pode ignorar os actores sociais no terreno.
Em bairros como o S. João de Deus, o Lagarteiro, a Pasteleira, os problemas que existiam e que o Rui Rio dizia que vinha resolver, não estão resolvidos!
No S. João de Deus, não se pode dizer que acabou o tráfico de droga, ele continua lá. Ando por ali há 26 anos e o que encontrei foram 280 famílias a viver em barracas, no meio de lixeiras. Trouxe aqui deputados da União Europeia e fizemos um projecto de luta contra a pobreza para acabar com aquilo. Em quatro anos, de 90 a 94, foi tudo substituído por 280 habitações e outras tantas famílias realojadas. Foi um acordo Fernando Gomes, Silva Peneda e Maia, a minha instituição, a Câmara e o Governo. Tivemos índices fantásticos. A alegria de crianças que tinham água, a ida para a escola aumentou, a criminalidade teve uma redução de 21% - dados da polícia. Depois, o Rui Rio ganhou a Câmara e deitaram abaixo as 280 casas - disseram que era para acabar com o tráfico da droga...
PL - E as pessoas que lá viviam?
PM - Foram espalhadas por outros bairros, mas a maioria não foi realojada. Houve ali, de facto, pessoas que não mereciam a casa: nós dizíamos que a Polícia Municipal devia agir, mas não agiu.
A CÂMARA INFLECTIU TUDO E DEITOU AS CASAS ABAIXO
Até 2000, tínhamos lá um controle social, equipas nossas. Houve casas ocupadas abusivamente, nós avisávamos a Câmara e a Polícia Municipal... e não acontecia nada! Pusemos contadores de água e luz, deixámos tudo igual para todos. Depois, a Câmara tomou conta das casas. Então o Dr. Rui Rio entrou, havia um projecto de requalificação que deveria dar continuidade, mas em vez disso a Câmara inflectiu tudo e deitou as casas abaixo.
A CÂMARA PARECE UM EUCALIPTO, QUE SECA TUDO À VOLTA !
Há uma coisa que eu denuncio: a Câmara do Porto não tem o direito de pôr à margem os actores sociais que há muitos anos vêm trabalhando nisto! Ao pô-los de lado, a Câmara parece um eucalipto, que seca tudo à volta! A cidade perdeu, com esta forma de governar.
Era importante também que a Polícia desempenhasse um papel dissuasor. Já perguntei porque é que não põem a polícia a cavalo. Um drogado foge de um carro, mas se houver um polícia a cavalo corta-se, que ele vai atrás dele onde for preciso!
Há muita gente tempo demais na rotunda, pessoas que estão há cinco, dez, quinze, vinte anos acamadas, ninguém lhes liga, há muita gente que vai andar permanentemente na rotunda porque não encontra saídas.
PL - E quanto à prevenção?...
(aqui o Padre Maia deu a palavra a Sofia Viana, psicóloga que há sete anos trabalha como técnica de prevenção da Fundação Filos)
SV - A nossa filosofia é intervir o mais cedo possível, antes de existir o risco. Temos uma equipa de intervenção em meios escolares. Mal os professores tenham uma indicação de que alguma coisa se passa, sinalizam-nos para que a nossa equipa faça uma avaliação e, caso se justifique, intervenha junto do aluno. Temos uma equipa de intervenção familiar, por exemplo em relação a jovens grávidas, no sentido de as preparar para que não cometam os mesmos erros que se calhar cometeram com elas.
HIP HOP, A LINGUAGEM DAS MARGENS
PL - Sei que o Padre Maia é um admirador e apoiante do fenómeno Hip Hop... porquê?
PM - Para mim, é a "Linguagem das Margens". Os rappers são os Zeca Afonsos da actualidade. Passam as mensagens, como o faziam o Zeca e o Fanhais, que eu cantei, até na missa (a PIDE gravou-me várias homilias), fiz o disco "És Mãe Solteira" e já nessa altura, apanhei muita porrada!
Fiz outro disco com o Miguel Graça Moura, "As crianças também são gente"... naquela altura eu estive em todas!
TEMOS UMA CLASSE POLÍTICA FEITA DE POLÍTICOS SEM CLASSE
Hoje, há no ar a consciência de que temos uma classe política feita de políticos sem classe! Temos que organizar a sociedade civil para cantar e dar um contributo, portanto continua a haver uma geração que é aquela que foi sendo vítima e se pronuncia.
A GERAÇÃO RASCA É UMA GERAÇÃO DE EXCELÊNCIA
Os nossos jovens, a que o Vicente Jorge Silva naquela frase infeliz chamou a "geração rasca", é uma geração de excelência, que se quer manifestar. É a linguagem do protesto. Eu próprio fiz um disco de Natal sobre a revolução de abril "ao operário, ao camponês, feliz Natal!", foi um disco que vendeu muito, não se ouvia outra coisa nas ruas do Porto!
(PL - devo dizer que não me surpreendeu nada ouvir o Padre Maia cantar, ali mesmo: "Sim senhores, é verdade, as crianças também são gente")
PM - Há tempos, há uns três anos, eu apetecia-me era fazer Rap... mas hoje a minha música é outra, deram-me outras responsabilidades, portanto disse "bom, não vou fazer rap mas vou tentar meter-me nisso" - fiz um Festival de Hip Hop e depois comecei a perceber que ia ter uma equipa de jovens que podem fazer o que eu não posso.
QUEM É RICO TEM OUTDOORS, QUEM É POBRE ESCREVE NA RUA
O Hip Hop tem quatro linguagens: a música, o texto, a parede e a dança, o break-dance. O rap é essencialmente texto, embora alguns também tenham musica e a parede serve para o graffiti.
PL - ...que é uma forma de arte?...
PM - Sim, uma coisa é o suja-paredes, mas há-os com muita arte. Quem é rico tem Outdoors, politicamente correctos, quem é pobre escreve na rua! "UM SERÃO COM DEUS É SUPER COOL" Tenho estado com eles, o meu interesse é o que chamo "a linguagem das margens". Costumo dizer que é "o lado de lá da banda de cá"... com frases como "Um serão com Deus é super cool"... Eles são muito críticos em relação ao politicamente correcto", usam palavrões, o politicamente correcto é aquilo que os chateia. E há muita malta que não pertencendo ao meio, só encostando-se a eles pode protestar.
O GRAFFITI É UMA LINGUAGEM QUE NOS LEVA A PENSAR
PL - Há dois Decretos-Lei que prevêem penas para quem suja paredes. Ora eu sei que o Padre Maia chegou a pedir muros para os graffiti... conte-me lá isso! PM - Já o fiz várias vezes - "Alguém que tenha um murito!..." - e já houve gente que emprestou um muro. Quando foi o Circuito da Boavista, falei com o Porto Lazer e eles autorizaram que dois deles fossem para lá. O graffiti é uma linguagem que nos leva a pensar de uma forma eloquente sobre aquilo que está mal! PL - Faça-me um retrato do futuro da FILOS... PM - A Fundação assenta essencialmente no trabalho dos nossos 27 técnicos. Queremos manter o Balcão Social, que é uma casa aberta para quem tenha necessidade de ajuda. Consolidar o que está feito e avançar para o projecto novo, de parceria com a Católica e a Trofa, que será uma experiência na educação de adultos. Eu gostava que a Fundação se envolvesse, não apenas naquelas problemáticas da pesada, mas também em algo com uma grande vertente educacional, um processo de alfabetização e educação popular. Para além disso, gostava que em cada Paróquia em Portugal houvesse um pólo da Fundação, que está aberta, como casa-mãe, a que outros locais do país, de acordo com as problemáticas que lá tiverem, possam contar connosco, se o desejarem. Mas não sou expansionista, quero acima de tudo consolidar o trabalho já feito, que penso que responde aos problemas que existem neste momento!
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