Sempre me preocupei com as pequenas nuances que o sistema vai introduzindo, de mansinho, através de engenhosas manobras "jurídicas", para limitar alguns dos mais sagrados princípios de direitos e liberdades dos cidadãos.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Constituição da República Portuguesa consagram o direito à liberdade de expressão e informação.
Esse é o trabalho da Imprensa e o seu dever perante a sociedade.
Para que essas funções não sejam corrompidas por interesses que não os da opinião pública ou feridas por objectivos ilícitos, o estado português fez duas leis que regulamentam a prática do jornalismo: 1/99 (Estatuto do Jornalista) e 2/99 (Lei de Imprensa).
No geral, definem os direitos e deveres essenciais.... mas nem tudo são rosas.
Quando o sistema não inventa excepções, recorre a outra atitude: a "interpretação" da lei.
É o caso que faz bradar o jornalista da Visão. Baseia-se num processo do Sporting contra o Público pela notícia, em 2001, de que o clube teria uma dívida de 460 mil contos para com o fisco.
Os jornalistas foram absolvidos em primeira instância (segundo o Tribunal "cumpriram com o dever de informação") e de novo na Relação. O recurso do Sporting ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) pediu uma indemnização de quase meio milhão de euros por danos não patrimoniais, que o STJ fixou em 75.000, de que o Público vai recorrer ao Tribunal Constitucional e ao Tribunal Europeu.
Verificados os trâmites, os jornalistas fizeram aparentemente todas as pesquisas possíveis: tiveram acesso a um documento oficial que referia a dívida, tiveram do Sporting a negação da mesma, e esbarraram com o "sigilo fiscal" da Administração Pública, uma das excepções ao direito de acesso da imprensa à informação, tal como o "segredo de justiça". Ou seja, na impossibilidade de apurar a verdade (que existia e constava da documentação em "sigilo fiscal"), os jornalistas noticiaram os factos que sabiam. De notar que o próprio conselho directivo do clube, em comunicado emitido a 12 de abril, diz que "foi notificado pela Administração Fiscal para pagar a verba (agora em euros) de 460 mil contos noticiada e demonstrou que a mesma não era devida" - ou seja, não havia fumo sem fogo.
Mas não é do Sporting e do Público que quero falar - nem dos meandros do caso, esses estão nos tribunais e lá serão resolvidos - é o do texto do acórdão do STJ, das suas implicações e (esperemos que não) consequências.
Nele lê-se: "É irrelevante que o facto divulgado seja ou não seja verídico para que se verifique a ilicitude (...) desde que (...) seja susceptível de afectar o crédito ou a reputação do visado."
E ainda: "A violação do disposto no artigo 484º do Código Civil (ofensa do bom nome) não depende da veracidade do facto divulgado, pelo que a ilicitude do facto não é afastada pelo cumprimento ou não das exigências da verdade."
Mais: o STJ compara o "ênfase" que a Declaração Universal dos Direitos do Homem confere ao direito à protecção do bom nome (Art.12º), com o "menor ênfase" que confere ao direito de expressão e de informação (Art.19º), embora, no mesmo acórdão os considere "de igual hierarquia constitucional"...
Olhemos este texto à luz da sua abrangência: se a divulgação de um ilícito lesa o bom nome de quem o pratica independentemente de ser verdade ou não, isto significa que o faz mesmo quando é verdade: ou seja, nunca mais se podem noticiar crimes ou actos que causem vergonha a quem os pratica. Por outras palavras: quem cometer crimes fica pelo menos com o segredo garantido para protecção do seu bom nome.
Isto viola princípios de moral, ética e justiça de todas as sociedades civilizadas do planeta.
Viola o direito da imprensa a informar e do público a ser informado.
O que menos interessa é o caso que o despoletou: o clube pode ter razão, o jornal pode ter razão - os próprios tribunais têm sido contraditórios nessa matéria. Mas a interpretação da Lei não pode ser feita deste modo, ou temos um bocadinho mais da cerca do vizinho a roubar uns metros de terra ao nosso quintal.
Portanto, é ao mesmo "silêncio" que choca José Carlos de Vasconcelos que eu quero apontar o dedo também: ao silêncio dos políticos, dos deputados, dos juristas, dos jornalistas, da opinião pública.
Não deixemos Portugal perder-se aos poucos - estejamos atentos!