PÁGINA DE IMPRENSA DE PEDRO LARANJEIRA 16 abril 2004

SAUDADES DO JORNALISMO

Mais de trinta anos depois de ter assinado o meu primeiro trabalho como jornalista e ainda recordado de uma deontologia que me orgulho de nunca ter prostituido, acabo de receber um (mais um) rude golpe na minha crença da honestidade (leia-se entre aspas) com que os media controlados por grupos sólidos do poder instituído lidam com os seus públicos-alvo.

Já tinha pasmado, aqui há uns anos, quando a nossa TVI violou todas as regras deontológicas de isenção da informação trazendo notícias de um "Reality Show" (seu, claro) para o espaço nobre da Informação (naquele caso, leia-se também entre aspas)... compreendo a necessidade exacerbada que as estações de televisão - todas - têm de se promover a si próprias, de utilizar tempo de antena em auto-propaganda, compreeendo as guerras de audiências, as mentiras toleradas à publicidade, mas não compreendo, não consigo, que se transforme em "Notícia" o acontecido num show de televisão, a menos que se tratasse de assunto público, como um crime, por exemplo, o que não foi o caso!

Também lamentei - e fi-lo publicamente, aos microfones de uma estação de rádio e no próprio dia em que aconteceu - que tivessem sido os próprios media a colaborar abjectamente no aproveitamento-extra que os Estados Unidos quiseram fazer do 11 de setembro (imitados por quase todo o mundo logo a seguir), de limitar liberdades individuais e coartar direitos de cidadania e privacidade que tinham sido sagrados durante décadas; assim desapareceu o sigilo bancário, assim foram alargados (um sorriso à medida real que esta palavra pode assumir) os prazos de prisão sem causa formada, assim passou a poderem fazer-se escutas telefónicas por mera decisão policial e sem a intervenção de um magistrado, etc, etc, etc, nem que para isso as forças da "ordem" tenham que alegar coisas tão vagas e improvadas como "suspeita de actividade terrorista" - então, tudo se justifica e até o sacrossanto princípio da presunção de inocência vai para uma gaveta de tempo indeterminado!...

...quando se dá conta, até se descobre ter chegado já, impunemente, a uma nova figura jurídica no panorama (agora muito enublado) da lei internacional: a legitimidade de invadir um país independente... por razões preventivas...

Convenhamos que Sadam o merecia, era um monstro, convenhamos que os autores do ataque ao World Trade Center mereciam tudo, são uns monstros, convenhamos que quem perpetrou Atocha merece tudo, foi monstruoso!

...mas, tal como o governo de Aznar tentou "aproveitar" para sacudir o incómodo ETA apontando-lhes idioticamente o dedo, também o Tio Sam aproveitou para colocar subtilmente a sua pata poderosa sobre a liberdade de imprensa, ainda o inverno de 2001 não tinha arrefecido a memória das pessoas.

Lembro-me de assistir aos noticiários das grandes cadeias norte-americanas em que foi anunciado que, a conselho do governo ou na sequência de avisos nesse sentido, não mais seriam difundidas gravações originárias de Bin Laden, antes de devidamente visionadas (que quererá isto dizer, ou melhor: "quem" quererá isto dizer?) porque "podiam conter mensagens subliminares" - estava de regresso a Censura!

Fosse qual fosse a desculpa, era Censura!

Sei que o anúncio desta auto-decisão pelos media era mentira e se tratava apenas de dizer ao público que eles tinham essa posição, para não lhes dizer que estavam a cumprir as ordens da voz do dono, mas foi o que veio a público.

Esta sensação de desconforto que cada vez nutro mais pelos grandes grupos-media potenciou a revolta que tive de engolir nos últimos minutos.

Desengane-se quem possa pensar que a nossa TVI teve desculpa, ao trazer um reality show para o telejornal, por ser uma televisãozita de um paízito... nada disso, pelo contrário: pode considerar-se percursora na cena internacional!

Depois de o Big Brother ter sido difundido em vinte e sete países, incluindo o nosso, e vinte seis deles não o terem incluído nos seus espaços de Informação, a nossa "quatro" só não ganhou lugar no Guiness porque o Guiness não inclui coisas destas... mas se o tivesse ganho, hoje já estava perdido!

Pois é, não é mais um fenómeno deste entroncamento nacional.

Acabo de assistir ao Noticiário da CNN minutos depois de uma conferência de imprensa com George W. Bush e Tony Blair que o mundo inteiro (incluindo a CNN) transmitiu em directo da Casa Branca e onde se falou de Iraque, Israel, Palestina, paz mundial e outros assuntos assim de pouco interesse como estes...!

Pois os jornalistas responsáveis pelas notícias da mega-estação abriram o bloco com uma reportagem sobre o vencedor (e o vencido, também, entrevistas, colegas, "the works") do Reality Show "The Apprentice" que tem vindo a distrair o povo americano dos militares (e civis) mortos em combate no estrangeiro!

Claro que, como notícia seguinte, informaram o público sobre o presidente, o seu aliado europeu e as últimas da cena internacional, a guerra, o terrorismo, os mortos, os reféns, Israel, a Palestina e todas essas coisas que mereciam um lugar nas notícias DEPOIS do anúncio de quem tinha ganho "The Apprentice".

Ainda nós pensamos que vivemos num país à beira-merda plantado!

Ah, lá que temos defeitos, temos, mas estou sempre a encontrar defeitos maiores vindos de fora!

Quanto à deontologia jornalística, só posso dizer uma coisa, triste e simples:

Tal como há alentejanos e alentejanos (e eu sei bem, que fui casado nove anos com uma), há também,

indubitavelmente,

inexoravelmente,

deploravelmente,

Jornalistas... e Jornalistas!...


© PEDRO LARANJEIRA
PUBLICADO "Notícias do Barreiro" 21.4.2004  

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